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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

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Jornalismo: um tubo de ensaio da sociedade

Passavam uns escassos minutos das cinco horas da manhã. Liguei a televisão e, à falta de melhor para me entreter àquela hora alugada por televendas e outras coisas que tais, ativei a máquina do tempo, que é o mesmo que dizer, puxei a emissão para trás, com cuidados redobrados para não fazer nada que pudesse alterar o presente e o futuro... A viagem no tempo estacionou numa reportagem da noite anterior onde se fazia o rescaldo do primeiro dia de reuniões entre o Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP), o governo e a Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM).

 

Não é minimamente surpreendente que nada tenha sido conseguido e que o processo não tenha sequer avançado um milímetro. Após a greve da semana passada, os patrões sentem-se com todo o poder nas mãos perante os trabalhadores e o seu sindicato, não tendo qualquer necessidade de ceder no que quer que seja. O esvaziamento do direito à greve, única arma real do proletariado face ao patronato, tem destas coisas. Os trabalhadores pedem, os patrões não dão, os trabalhadores param, o estado obriga a trabalhar e todos vivem felizes para sempre. Só que não.

 

No final desta fantochada a que se convencionou chamar de “mediação”, primeiro falou o representante dos patrões, claro, como sempre. André Matias de Almeida terá sido o último a chegar, terá estado uns bons dez minutos na reunião, não mais do que isso, nada de muito substantivo terá sido discutido, não havia tempo senão para entregar uma folha A4 impecavelmente datilografada, com logótipos e tudo, e para trocar alguns prioritários cumprimentos com os seus compinchas de governo e de partido. Terá sido o último a entrar, o primeiro a sair e o primeiro a falar. Isto é que é o mais importante, microfones em riste para o doutor André, sempre! Porque vale muito a pena os portugueses ouvirem o senhor doutor André. Só que não.

 

Em seguida, falou Pardal Henriques, do sindicato, sempre muito paciente para tentar a dificílima missão de passar a sua mensagem pela espessa parede feita de questões ideologicamente orientadas e de insistentes interrupções erigida pelos jornalistas ali presentes.

 

E, por fim, falou o representante do governo, o ministro das Infraestruturas e Habitação, Pedro Nuno Santos, o paladino do primeiro-ministro António Costa, o político do diálogo, dos consensos, o amante do socialismo e da esquerda, uma versão melhorada e contemporânea de Guterres que até já deve ter a sua EP reservada para a edição deste ano da Festa do Avante. Só que não.

 

É curioso: ouvir falar Pedro Nuno Santos e André Matias de Almeida foi uma e a mesma coisa. Ouvir o governo e o patronato é rigorosamente o mesmo, uma repetição surreal, um pleonasmo bizarro. O problema será nosso por pensarmos que são entidades distintas. Dizem que Pedro Nuno Santos será o sucessor de António Costa, mas eu cá, com os meus botões, acho que o PS não ficaria pior servido com as exímias qualidades do doutor André, principalmente após esta missão de sucesso na representação do patronato e na repressão do povo trabalhador.

 

Nada disto, todavia, captou a minha atenção. Nada disto é novo. Nem tão pouco a habitual análise daquele fantoche de conveniência que se coloca de frente para as câmaras, em estúdio, para finalizar o processo de lavagem cerebral. A minha atenção prendeu-se noutra coisa.

 

Fugiu o olhar preguiçoso para aquele grupo de indivíduos que envolviam de interpelações os representantes, ora da ANTRAM, ora do SNMMP, ora, por último, do governo. A média de idades dos jornalistas presentes não poderia ultrapassar os trinta anos. Com efeito, não fosse cada um deles exibir um microfone numa das mãos, parecia à primeira vista um qualquer grupo de adolescentes, uns acabados de sair da puberdade e outros em plena glória dessa efémera estação da vida.

 

Para o que faz um jornalista hoje em dia, vinte e poucos anos chegam muito bem: fazer as perguntas que lhes foram colocadas num papelinho no bolso de trás das calças, repetir as conclusões que aprenderam antecipadamente antes da entrevista e, claro, trabalhar como um cão, ser pago como a um cão, com um horário de cão. É melhor apagar esta última parte que não é politicamente correta nos tempos correntes. É discurso figurativo apenas. Todos os animais devem ser bem tratados. Voltemos ao ponto em discussão.

 

Para o que um jornalista devia ser capaz de fazer, todavia, para ser capaz de, por exemplo, articular uma resposta dada com uma pergunta pertinente, que eventualmente nem estivesse previamente preparada, ser capaz de ler nas entrelinhas do que é dito pelo interlocutor e ter a curiosidade e a coragem de questionar sobre o que não é dito, para isto e para outras coisas, não chegam vinte e poucos anos, nem trinta, nem, por ventura e em muitos casos, quarenta.

 

Aquele grupo de jornalistas constitui bem mais do que uma mera amostra estatística do jornalismo em Portugal ou, se quisermos, do mundo ocidental. Aquele grupo de jornalistas é o reflexo mais límpido da sociedade em que vivemos, deste culto bacoco à juventude, ao aqui e agora em vez do conhecimento da história e do passado e das perspetivas para o futuro, ao recibo-verde e ao dinheiro rápido e fácil ao invés da estabilidade, à emoção em detrimento da razão, à ambição sem medida em vez da experiência, ao histerismo das redes sociais em lugar da cultura e da sabedoria, aos excessos das festas e festivais, e por aí fora. Podia continuar. Mas a verdade é que a juventude não é a solução para equilibrar os pratos da balança, para colocar mais peso na estabilidade, no bom senso, nos princípios, na ética e nos valores, na introspeção, na reflexão, no conhecimento ou na cultura. Para tudo isto é fundamental viver, é fundamental experiência de vida como condição necessária, não suficiente, mas impreterível para uma sociedade mais sábia, mais culta, mais estável, mais estruturada em valores e princípios comummente aceites.

 

E depois debruçamo-nos sobre os jornalistas que lá estão, rapazinhos de barba rala ou rapariguinhas carregadas de acne juvenil, e muitos já passaram pelos principais meios de comunicação, já escreveram livros sobre temáticas difíceis e delicadas, à partida, e os seus CVs são uma multiplicidade de cursos tirados em universidades privadas d'Aquém e d'Além-Mar. Resta-nos apenas considerar estar na presença de verdadeiros génios, figuras ímpares que preenchem o universo do jornalismo deste país tal como as existem também, por decalque, em cada uma das outras relevantes áreas da sociedade. Só que não.

 

Agora de tarde, assistia ao anúncio de uma nova greve convocada pelo SNMMP apenas a horas extraordinárias, fins-de-semana e feriados. Ilustrando o que acabei de escrever, a primeira questão dos jornalistas presentes foi qualquer coisa como: “(...) que serviços mínimos estão a pensar fazer?”

 

A pergunta é tão absurda que a jornalista que a fez ou não ouviu nada do que tinha acabado de ser anunciado, ou não faz a mínima ideia do que são serviços mínimos, ou, então, está mandatada superiormente para fazer aquela questão particular com o intuito de propiciar o caos desinformativo. De qualquer forma, é manifestamente representativo do paradigma dominante.

publicado às 16:26

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