E, portanto, prosseguimos vendo futebol.
Por vezes, parece que andamos todos coletivamente à procura de pretextos que nos distraiam da nossa vida, como se esta fosse — e seguramente será em muitos casos — verdadeiramente insuportável. Agora temos sensivelmente vinte dias de futebol, de seleção nacional, pela frente. Não se fala noutra coisa, nas televisões, nas rádios e nos jornais. Não há mais vida para além do futebol. Se não forem jogos em direto, são análises aos mesmos ou antevisões aos que se seguem. Ou, então, comentadores a comentarem-se a si próprios. Fala-se e escreve-se sobre literalmente nada.
Antes da seleção foram outras realidades, outros acontecimentos, que preencheram o espaço mediático. Depois do futebol virão outros pretextos, talvez mais futebol que parece ser de uma qualidade inesgotável. Em cada um deles despejamos todas as nossas angústias e cada uma das nossas esperanças.
Não é compreensível. É impossível explicar ou compreender este processo de transferência da nossa vida para uma realização artificial e completamente externa como é o futebol. Ainda se o futebol fosse uma manifestação coletiva desportiva da nação, então poder-se-ia compreender o fenómeno na ótica de um espírito nacionalista ferrenho. Mas o futebol é uma manifestação profundamente corrompida pelo sistema capitalista. Os jogadores são colocados sobretudo em função do potencial negócio que possam gerar mais do que por qualquer outra coisa. Nem a nacionalidade é hoje um obstáculo. Esqueçam a bandeira e o hino. Tudo revolve em torno do dinheiro. Todavia, o povo acompanha o fenómeno de uma forma muito pouco saudável, alimentado por uma comunicação social que, nestes momentos, revela a sua verdadeira face decadente.
Os resultados do futebol são vividos, portanto, em extremos, numa espécie de transtorno bipolar. As vitórias são festejadas com histeria e delírio. As derrotas são recebidas com depressão profunda. Nada disto parece fazer muito sentido. Mas no final do dia, configura-se muito mais fácil ir para a cama e adormecer a pensar nos golos da seleção ou nas opções do selecionador para o próximo jogo, do que pensar no que realmente é necessário enfrentar no dia seguinte, na vida real.
Por ventura, a explicação reside aqui: sentimo-nos tão amarrados, tão presos, tão condenados, à vida que levamos, sentimos que não temos poder para fazer o que quer que seja, que despejar a adrenalina em algo tão fútil quanto o futebol parece ser a única coisa razoável a fazer. Isto é o resultado de vivermos voltados para o nosso próprio umbigo, de sermos criados dessa forma, individualista, egoísta e seguidista, de não nos apoiarmos solidariamente, comunitariamente, uns nos outros. Porque o poder para fazermos algo acerca das nossas vidas reside em nós próprios tanto quanto está nos que nos rodeiam. Como estamos tão formatados desta forma individualista, esta realidade está vedada aos nossos olhos. E, portanto, prosseguimos vendo futebol.