Depois da geringonça
A sucessão de eventos da política nacional tem concorrido para suportar aquela tese que tem vindo a ser defendida neste blog: o PCP rendeu-se definitivamente a uma posição ora de indisfarçável embaraço, ora de humilhação declarada. É uma humilhação de quem perdeu o pé na estrutura ideológica onde caminha, de quem já não sabe muito bem distinguir entre o essencial e o acessório, confundindo constantemente o último com o primeiro. O essencial é o património ideológico. O essencial é o revolucionar da sociedade burguesa. O acessório é este fogacho de poder e as esmolas que se conseguem conquistar ao poder burguês.
Aprovado mais um orçamento de estado, mesmo depois de ter sido enganado pelo governo, em orçamentos anteriores, com a patifaria das cativações, o PCP propôs medidas concretas para regulamentar o código de trabalho. Esta semana, o governo rejeitou todas as medidas apresentadas votando ao lado da direita parlamentar, como aliás tem sido seu apanágio. O mesmo governo que precisa do apoio do PCP para aprovar orçamentos, vota com a direita em tudo o que é política essencial e estrutural, nomeadamente no que diz respeito ao código de trabalho e à segurança social tão essenciais que são para qualquer política séria de redistribuição de riqueza, seja ela qual for. Precisamente por saber disto mesmo, o governo joga à direita. E o PCP encolhe os ombros.
Perante isto — que é uma verdadeira afronta política reiterada — o PCP encolhe os ombros; e coloca cartazes que dizem “Nós propusemos, o governo rejeitou”; e põe o Jerónimo em comícios a choramingar as traições da companheira política adúltera. É este o ridículo a que está votado o PCP. É esta a camisa de sete forças na qual o partido voluntariamente enfiou os seus braços. É este o embaraço. É esta a humilhação de um partido que se arrisca a perder tudo, o pouco ou o muito, consoante o ponto de vista, que lhe restava: a sua espinha dorsal.
Nas ruas os trabalhadores lutam sozinhos. Na Autoeuropa, na Galp, na Triumph, na Gant e em tantos outros locais, os trabalhadores e trabalhadoras lutam sozinhos. Os sindicatos permanecem adormecidos, inoperantes, paralisados de movimentos. Na Assembleia da República ninguém vale aos trabalhadores. Nenhuma palavra inconsequente lhes vale. Nenhum projeto de lei condenado desde a nascença ao fracasso lhes vale. Eles lutam sozinhos. Nunca conseguirei compreender como esta posição minoritária do PS se transformou numa posição de força inabalável. Nunca conseguirei compreender como uma força real — a força de fazer cair um governo de um momento para o outro — se transformou em fraqueza tão evidente que até soa a cobardia. E acho que muitos outros, como eu, também não.
Não sei o que será do PCP depois da geringonça e isso preocupa-me, porque não sei o que será do país sem a força deste pilar ideológico que tanta falta lhe faz. A força de ser diferente, em coerência e em exemplo, esbateu-se. Esbateu-se a frase “estamos ao serviço do povo e dos trabalhadores”. Esbateu-se a frase “nunca tivemos oportunidade de governar”. Esbateu-se até mesmo a frase “somos diferentes”. A oportunidade de ser diferente é agora. A oportunidade de influenciar a governação é agora. A possibilidade de mostrar serviço ao povo trabalhador é agora. É agora e foi ontem e será amanhã num amanhã que se abrevia rapidamente com o passar dos dias.
Ao PCP sobrará apenas a esperança de que o eleitorado lhe reconheça alguma influência positiva nesta geringonça que está para acabar e que isso lhe possa valer para voltar mais tarde, mais forte. O PCP, em suma, joga toda a sua mão na memória do eleitorado, coisa peculiar que nunca lhe valeu antes e que não consta que tenha valido alguma vez a alguma força política. Não consta, sequer, que essa massa informe a que se chama de “eleitorado” seja dotada dessa importante faculdade quando, pelo contrário, nas suas ações e dinâmicas se aparenta mais a um peixe de aquário do que a outro animal qualquer.
Quando a geringonça acabar o país que restará será um gémeo apalermado e algariado do Portugal de Passos e de Portas. A diferença essencial é esta mesma: um clima económico expansionista, que se vê na concessão desenfreada de crédito — a qual já faz soar campainhas de alarme no Banco de Portugal —, alicerçado numa bolha turística que se agiganta a cada dia que passa, ou seja, alicerçado em coisa nenhuma. A par disto, há as reposições de direitos a reformados e a funcionários públicos. Isto é anedótico para ilustrar uma política socialista séria, para dizer o mínimo. Também é alarmante enquanto política e estratégia económicas a médio e longo prazo. Já este ano começaremos a aferir da consistência desta política quando o Banco Central Europeu começar a cortar na compra de títulos de dívida pública. Também aqui, exigia-se ao PCP uma outra resposta. Acreditar que reposições de salários — ainda por cima setoriais — resolvem, por si só, problemas económicos estruturais é coisa para partidos irresponsáveis e demagogos.
Mas a resposta do PCP é outra, é a mesma desde o princípio da geringonça: é ter um pé dentro e outro fora, é dar o aval com uma mão e apontar o dedo com a outra, para tentar passar a ideia desesperada de que tudo o que é positivo a ele se deve, ao mesmo tempo que tudo o que é negativo ao governo deve ser assacado. Tristes figuras, estas que têm os destinos do PCP nas mãos... não percebem que o resultado final será aquele que é rigorosamente simétrico ao que pretendem.