Colégios privados: quando não queremos que nos façam a nós o que fazemos aos outros
Neste final de semana de trabalho vemo-nos confrontados com manifestações de indignação por parte dos colégios privados que se atemorizam por uma ameaça hipotética de redução do seu financiamento público. Como foi lançada a suspeita e antes que a mesma se materialize em algo de concreto, os colégios privados juntam-se e erguem a sua voz corporativa na tentativa de retirar as hipotéticas ideias da cabeça do senhor ministro.
Toda a situação é muito incoerente desde o princípio até ao fim, bem entendido, desde a conceção do problema, passando pelo desenvolvimento deste status quo da educação em Portugal, até a este desfecho que, a verificar-se, não contém absolutamente nada de inesperado.
Não é de agora: o processo de desorçamentação da educação em Portugal não começou ontem, já tem décadas. A Revolução estabeleceu as condições, que vieram a ser prosseguidas posteriormente, de dotar o nosso analfabeto e inculto país de uma rede de escolas capazes de cumprir o desígnio da educação democrática para todos. O que os sucessivos governos PS-PSD vieram a fazer foi aquilo que podemos chamar de desmantelamento deste sistema, através de um processo de subcontratação a colégios privados que se traduziu, na prática, a uma transferência direta de verbas das escolas públicas para escolas privadas. Não é menos relevante notar que, nas escolas privadas, os alunos têm acesso, em média, a recursos muito mais pobres do que nas escolas públicas.
Com isto, os governos puderam fechar escolas, deixar de contratar professores e demais funcionários do sistema educativo, desorçamentando, deste modo, os dinheiros destinados à educação. Note-se bem que, ao contrário do que se possa à primeira vista pensar, este processo não produziu um cêntimo de lucro em prol do país. Um aluno no sistema privado custa, com efeito, mais dinheiro ao estado do que se estivesse inserido no sistema público. Porém, o objetivo de camuflar contas e de criar clientelas privadas agarradas, quais rémoras, ao tubarão estatal foi plenamente alcançado, tanto na educação como em outras áreas aliás.
Havia também um outro objetivo subliminar, mais ideológico: com a trajetória de empobrecimento estatal que o País vinha seguindo, tal estratégia de subconcessão na área educativa teria como finalidade última, por questão de pura lógica orçamental, a privatização indiscriminada do sistema educativo consubstanciada numa espécie de cisão do mesmo, isto é, uma escola para quem pudesse pagar e uma outra para quem não pudesse. Esse seria o plano a longo prazo.
Seja por uma razão, seja por outra, é perfeitamente natural que os colégios privados vejam o seu financiamento público severamente cortado. Estavam à espera de quê, afinal? Também é igualmente incoerente o seu posicionamento no contexto do problema. É que não há uma instituição de ensino privada, uma única arrisco-me a dizer, que não conte com o auxílio de dinheiros públicos para provisionar o seu funcionamento, desde a instituição mais modesta ao colégio mais selecionado. Que espécie de papel é este afinal?
Por fim, não deixa de ser irónico que os colégios privados, os principais empregadores de professores precários no país, sugando trabalho altamente especializado e capaz a preços de saldo, muitas vezes a menos de dez euros à hora, sejam eles próprios vítimas da sua situação precária, daquela que resulta do seu enquadramento na estratégia educativa portuguesa. No fundo, as suas manifestações de indignação têm como alvo uma manutenção imutável da sua situação de subcontratação face ao Estado. O que eles reivindicam, na verdade, é estabilidade na sua relação de subalternidade face ao Estado, algo que, a maioria deles, renegam abertamente aos professores que para eles trabalham, ano após ano, precários, sem saber o que esperar para o ano seguinte. Fica sempre mal quando não queremos que nos façam a nós o que fazemos, diariamente, aos outros.