Alemanha, capitalismo, realidade
Decorrem hoje as eleições para o parlamento alemão e para a posição de chanceler. Os alemães vão, uma vez mais, escolher a direção e o sentido das políticas do seu país. Sobre este propósito, tive a oportunidade, ontem, de assistir a uma grande reportagem que passou na RTP3, sob o título Alemanha: O Reverso da Medalha, assinada por António Louçã, jornalista.
Fiquei chocado.
A reportagem atravessa os vários planos da sociedade alemã contemporânea, diretamente erigida após a queda do muro de Berlim. De longe, a maior e mais poderosa economia europeia, “o motor da Europa”, uma das mais fortes economias mundiais que todos os anos acumula excedentes de produção, a Alemanha real, a Alemanha das pessoas, não reflete, nem de perto nem de longe, essa pujança e sucesso avassalador da sua economia. Pelo contrário, a pobreza extrema alastra, o abismo entre ricos e pobres aprofunda-se e a facilidade com que um indivíduo da classe média pode cair na indigência é inacreditavelmente assustadora.
O que me choca nesta história não é o conhecimento dos contornos da história em si. Isto é capitalismo no seu esplendor. Isto é o que qualquer economista que tenha um mínimo de decência intelectual e de respeito pelos seus estudos dirá que acontece, inevitavelmente, em qualquer sociedade capitalista. Isto é o caminho, é a meta inexorável do sistema capitalista. O que me choca é que estamos a falar da Alemanha. Se há país que tem todas as condições para distribuir mais rendimentos pelos seus cidadãos, ainda que favorecendo a burguesia, ainda que concentrando riqueza sobre os mesmos, é a Alemanha. É o país mais rico europeu.
E, todavia, promove um sistema de aluguer de trabalhadores. Disse bem: os trabalhadores não são mais contratados, mas alugados! A razão é que as pobres das multinacionais não podem condicionar os seus lucros a alterações inesperadas do mercado... Os trabalhadores, cujos vencimentos diminuem ano após ano, tão pouco exigem que as empresas lhes paguem quando ficam impedidos de trabalhar devido a doença. Estamos a falar de salários que rondam os doze euros à hora e em que o salário mínimo não chega aos nove euros por hora. Esta é a realidade alemã.
E, todavia, o sistema de segurança social alemão obriga a uma expropriação compulsiva dos trabalhadores que caem no desemprego para que possam usufruir de um subsídio! Vejam bem: não é comunismo, é capitalismo! Os desempregados têm que vender todos os seus bens e gastar todo o dinheiro para poderem usufruir de um subsídio! E, depois, para poderem continuar a usufruir desse mesmo subsídio, são obrigados a trabalhar por um euro à hora! O mais grave é que, ainda assim, há relatos de que esta situação consegue ser mais vantajosa do que o que o mercado de trabalho alemão oferece!
Repito: estamos a falar da Alemanha! Não é Portugal, não é a Grécia. É a Alemanha!
A reportagem finaliza ainda com um retrato negro dos serviços públicos da saúde e da educação. É que, depois de tanto imposto e de tanto saque a quem trabalha, tão pouco sobeja dinheiro para investir nos hospitais e escolas, onde enfermeiros, médicos e professores trabalham sem as mínimas condições e oferecendo serviços de saúde e educativos de baixa qualidade ao povo.
Há também uma alusão muito curiosa aos tempos da Alemanha de leste, a RDA: “Seria de esperar que, pelo menos na RDA, o salário tivesse aumentado”. Não tenho a frase literal, mas foi qualquer coisa do género. Sendo o suficiente para despertar a curiosidade, é pena que o jornalista não tenha explorado este ponto. Se puxasse por este fio, creio que desmontaria muita da ladainha anticomunista tricotada no ocidente a propósito da RDA. Fala do destino dos têxteis e de tantas fábricas no leste que, após a queda do muro, foram imediatamente fechadas e deslocalizadas, já nos anos noventa, para outras paragens de mão-de-obra barata.
Em França, Macron pretende copiar este “virtuoso” modelo alemão. Ninguém poderá chamar Macron de mentiroso porque apresentou-se a votos com este mesmo propósito e os franceses nele votaram. Em abono da verdade, muitas destas políticas vão sendo replicadas desde há algum tempo, com esta ou aquela nuance, em Portugal e no resto da Europa. É o pensamento único europeu. É o pensamento único do capitalismo.
Na Alemanha, os alemães votam também a esta hora que escrevo. Eles é que são os donos do seu destino. Eles é que moldam com as suas próprias mãos o país que têm, o país que querem e o país que merecem.