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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

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A verdade do avesso

O caso Raríssimas é um excelente exemplo de como a discussão pública em torno dos mais variados temas é um rodilho com excesso de infantilidade e falta de seriedade e de pragmatismo. O debate em torno da Raríssimas foi e continua a ser exatamente assim, misturando sentimentalismos mais ou menos hipócritas com julgamentos subjetivos e pouco contextualizados de modo a não se discutir nada do que seja essencial. E o que é essencial é este sistema de capitalismo de estado burguês.

 

Em primeiro lugar, sejamos sérios: qual é a novidade do caso Raríssimas? Quantos de nós já não ouvimos tantas histórias semelhantes de associações similares? É que, não sendo sérios connosco próprios, como podemos sê-lo na discussão do caso?

 

Em segundo lugar, quem se pode verdadeiramente espantar com este caso? Não foi o estado e muitos de nós individualmente que confiámos o nosso dinheiro nas mãos de uma associação que, em boa verdade, não tem — nem tem que ter, diga-se — nenhum tipo de responsabilização ou de supervisão da sua atividade? Do que é que esperávamos, afinal?

 

É que a questão é mesmo esta: a nossa sociedade escolhe confiar em privados, que não são eleitos nem se submetem a qualquer tipo de sufrágio ou de controlo, para servir o bem público. Eu sempre pensei que esta era a definição prática da palavra estado, mas parece que tenho andado enganado.

 

Estamos aqui à espera para ver se neste processo alguém será constituído arguido, se alguém será acusado e se alguém será condenado ­— são coisas diferentes. Preparem-se para uma boa espera. O problema em causa não tem, à partida, nada de ilegal: é, antes sim, moral.

 

Moral!

 

Mas nós confundimos tudo, confundem-nos, lançam-nos areia para os olhos, levam-nos nesta dança histérica durante uma ou duas semanas que é para que nada de substancial seja alterado e para nos darmos conta disto mesmo.

 

É que — reparem bem — se a Raríssimas é culpada de esbanjar o dinheiro da Segurança Social em vestidos e camarão, também a Sonae e a Jerónimo Martins são culpadas de acumularem os fabulosos lucros que todos os anos garantem lugares de destaque aos seus líderes nas listas de milionários deste mundo, porque esses mesmos lucros são obtidos às custas de operadores de caixa colocados pelo Centro de Emprego e pagos pela Segurança Social — será que há alguém que está a ler estas palavras que desconhece esta realidade?!

 

Mais: apesar das benesses que estas e outras empresas recebem da Segurança Social, que somos todos nós, não organizarão também os seus cocktails de camarão? Não comprarão também os seus carros de serviço de luxo? É que é a mesma coisa! Onde está a moralidade? Onde está a diferença? A diferença é que no caso da Raríssimas o povo tem pena dos meninos doentes, tem pena das vítimas. A diferença é o sentimento que salta à vista. O problema não é a Raríssimas. O problema é o sistema. O problema é o capitalismo.

 

Mas nós não somos sérios nem quando a coisa nos bate de frente. E mais, escolhemos ser infantis na forma como encaramos a coisa. Ao mesmo tempo que a maioria de nós vê no estado um demónio usurpador de liberdades — em muitos casos com fundadas razões — olhamos para os privados, nomeadamente nestas "instituições de solidariedade", como anjos puros sem qualquer tipo de interesse próprio. Parece que não crescemos desta infantilidade endémica e preferimos antes continuar a ver a verdade do avesso.

publicado às 18:51

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