A razão de ser da vontade das massas é perfeitamente insondável
No seu último artigo de opinião no Público, Pacheco Pereira defende, uma vez mais, a tese de que as eleições em Portugal se ganham ao centro. Esta é uma tese com a qual é fácil concordarmos se, por centro, entendermos algo que aparenta não ser nem muito quente, nem muito frio, algo que, na verdade, nem aqueça, nem arrefeça. É isso que o povo, em geral, quer: uma política que mantenha as coisas como estão, as relações de poderes, e promovendo uma pueril rotatividade de caras, ora acrescentando um D ao PS, ora retirando um D ao PSD. Não há nada de novo na apresentação desta “ideia de estimação” do autor. A novidade está na argumentação utilizada.
Diz Pacheco Pereira que isto — o “facto” das eleições se ganharem ao centro — se deve a um “eleitorado urbano politicamente mais qualificado e informado” que vota ao centro. Este argumento, repetido duas vezes ao longo do texto, não encontra qualquer evidência prática que não seja aquela que advém de um preconceito a priori do autor. Em bom rigor, não existe qualquer dado objetivo que nos permita distinguir o eleitorado rural do eleitorado urbano. Não há nenhuma análise de resultados eleitorais que aponte nesse sentido e, se acaso assim não fosse, as agendas dos partidos políticos durante as campanhas eleitorais seriam sobretudo centradas em Lisboa e no Porto, o que não acontece. Também não existem indicadores culturais que diferenciem os dois eleitorados ao ponto de podermos identificar um subconjunto de um deles como “mais qualificado e informado”.
Empiricamente, se nos dermos ao trabalho de trocar duas palavras com elementos de um e de outro eleitorado, o rural e o urbano, somos facilmente conduzidos à conclusão de que as diferenças não são muitas e os elementos do subconjunto “politicamente qualificado e informado” difíceis de encontrar num e noutro lado. Por isso, dizer que o “eleitorado urbano politicamente mais qualificado e informado” justifica o que quer que seja na macro política nacional constitui uma conclusão no mínimo arriscada.
Há diferenças entre um e outro eleitorado, claro que há. Mas essas diferenças não são suficientes para justificar o que quer que seja. Por exemplo, o eleitorado rural está mais próximo das estruturas políticas locais do que o eleitorado urbano, em geral. Mas isso não traduz, sabemo-lo muito bem, qualquer implicação em termos de eleições nacionais. Por outro lado, a diferença entre urbano e rural está, muitas vezes, a menos de meia centena de quilómetros do centro das cidades: saímos do centro do Porto ou de Lisboa e em pouco tempo estamos numa aldeia qualquer que mais parece não ter evoluído desde o século XIX em termos de costumes. E é precisamente para esses locais que a população das cidades está a ser paulatinamente empurrada, por força das altas rendas e especulação turística.
Em termos de inclinação política, é muito mais relevante, por exemplo, a diferença norte-sul do que a diferença urbano-rural e, mesmo assim, todas as diferenças tendem a esbater-se, as populações locais são cada vez menos estáveis e cada vez mais móveis, o que torna qualquer correlação de dados mais ou menos irrelevante. Todavia, confesso que estas tentativas de ensaiar justificações para resultados políticos ou comportamentos de eleitorado sempre me divertiram. Esta, de Pacheco Pereira, foi completamente ao lado. A razão de ser da vontade das massas é, em bom rigor, perfeitamente insondável.