A "panaceia" da reciclagem
Os tempos correntes são febris no que ao tema da reciclagem diz respeito. Há metas envolvidas. Há médias europeias a superar. Há também uma moralidadezinha associada. Quem não recicla é como quem não se lava todos os dias ou então, outra coisa pior.
A reciclagem é um bom exemplo desta sociedade doente em que vivemos, desta demência permanente que nos envolve. Vivemos numa sociedade em que não pensamos sobre nada, não temos um juízo crítico sobre as coisas que se nos impõem e contentamo-nos em seguir procedimentos mais ou menos imediatistas ainda que absolutamente inócuos.
É difícil de imaginar alguma coisa que exista neste mundo capaz de exceder em hipocrisia o fenómeno da reciclagem. Enquanto todos berram aos ouvidos de quem não recicla usando a argumentação mais pobre e trivial que existe, o mundo continua a girar numa rotação de excesso de produção, de consumo desenfreado, de exploração incorreta e desequilibrada de recursos, o que inclui, naturalmente, o abuso de utilização de materiais não biodegradáveis. Esta lógica de governação dos povos é tida maioritariamente não só como legítima mas também como desejável, não obstante ter em vista apenas o enriquecimento de uma pequena parte da população. Então, o problema do excesso de resíduos não é colocado ao nível da quantidade completamente redundante e desnecessária de embalagens e de embalagenzinhas produzida, mas no cidadão médio que não transporta essas embalagens para o contentor amarelo. Não obstante, independentemente da ação adotada pelo cidadão médio, a mesma quantidade (senão maior) de embalagens continua a ser produzida e a acumular resíduos.
Mas há mais. Há um par de anos ouvi uma estatística reveladora que dizia que qualquer coisa como dois terços do lixo enviado para a reciclagem em Portugal não era reciclável por mais do que um motivo. O processo de reciclagem era, então e de facto, de todo em todo ineficaz.
Gostava de poder, com efeito, apresentar as estatísticas atuais sobre o fenómeno mas não consigo. Não existem tais estatísticas. Não são disponibilizados dados sobre a eficácia processual da reciclagem nem, tão pouco, sobre os custos associados. Por isso, reservo-me o direito de especular que a situação permanece mais ou menos idêntica. Ou seja, ainda que todas as embalagens fossem colocadas na reciclagem, apenas cerca de um terço seria recuperado. E a que custos?
Mas é isto a nossa sociedade no que respeita à reciclagem ou a outra coisa qualquer: os problemas não são enfrentados de frente, na sua origem, na fonte. Prefere-se, pelo contrário, não mexer com qualquer interesse instalado e inventar remedeios fáceis, panaceias ilusórias e mais ou menos descartáveis, fáceis de aplicar, e, se possível, capazes de espoliar os estados de grandes quantidades de dinheiro. Estas panaceias, transmitindo uma ideia contrária, nada curam de facto. Ao mesmo tempo que se faz um enorme esforço e se gastam enormes quantias para reciclar um pouco, poucochinho, o mundo continua a produzir e a multiplicar grandes quantidades desnecessárias de plástico, vidro e papel, quantidades essas tornadas resíduos insustentáveis para o planeta independentemente da micro-gota de água, a que se chama de reciclagem, que cai no oceano.
Para ser suficientemente claro: o problema ecológico reside também ele no modelo de desenvolvimento económico adotado. O problema ecológico reside na filosofia gananciosa que preside ao sistema capitalista e não, como nos pretendem fazer crer, na falibilidade do ser humano.