A filosofia não vem primeiro, vem depois
Não sou contra a existência de exames em qualquer nível de ensino. Os exames a nível nacional são os instrumentos de avaliação mais imparciais e equitativos de que podemos dispor para aferir objetivamente a capacidade dos alunos na execução de um determinado tipo selecionado de atividades.
Dito isto, algumas relevantes questões se impõem. E tais questões impõem-se apesar de para muitas pessoas o parágrafo pretérito, por ser verdadeiro, secar em seu redor todo o debate sobre educação e pedagogia, qual eucalipto dogmático.
Será que é importante a aplicação de tais instrumentos em geral ou num certo nível de ensino em particular? Por outras palavras, será que a informação, objetiva e equitativa, que estes instrumentos permitem recolher é importante ou até mesmo relevante para retirar conclusões sobre a capacidades efetivas de cada aluno no contexto da disciplina? Será que o modelo de avaliação sugerido pela aplicação de exames é essencial ou único ou indispensável?
A questão que se coloca é, na minha opinião, muito mais abrangente do que a utilização ou não de meros instrumentos avaliativos. Com efeito, trata-se antes da adoção de uma visão global para a educação e para a formação. Trata-se de uma questão filosófica.
Com exames temos uma educação focada em objetivos palpáveis e medíveis. Com exames temos uma educação automatizada e mecanizada. Mas com essa procura de objetivos medíveis perde-se algo por ventura mais essencial: qualidade nas aprendizagens. A maioria dos professores com que nos possamos cruzar dir-nos-á isso mesmo. Uma aprendizagem governada em torno da existência de exames, isto é, conduzida para atingir o sucesso em exames, é uma aprendizagem forçosamente mais pobre porque forma máquinas de resolução de questões através da aplicação de receitas.
Por outro lado, um ensino livre de exames tende a ser mais lascivo, é verdade, mas há que separar o que é endémico do que é casuístico, ou melhor, do que é oportunista. Porque a inexistência de exames abre, isso sim, um mundo de aprendizagens completamente diferente na perspetiva do professor e, sobretudo, do aluno. O professor poderá submeter os seus alunos a métodos de avaliação diferenciados, poderá mesmo lecionar matérias diferentes de formas diferentes que permitam a diferentes alunos aprender diferenciadamente mas, ainda assim, aprender.
A chave aqui está na figura do Professor. O esvaziamento do seu poder e autoridade não é uma boa solução. Pelo contrário, o Professor deve ser superiormente formado e socialmente reconhecido para poder, aí, dispor da autoridade e da responsabilidade inerente para desenvolver o seu trabalho autonomamente. Se assim for, a ocorrência do ensino lascivo é dramaticamente reduzida. Se apostarmos na qualidade da formação do Professor, qualidade científica e humana, então só teremos que confiar nele e ele saberá, melhor do que ninguém, formar e educar os nossos alunos.
O percurso, todavia, tem sido contrário e, diga-se, não é exclusivo da profissão de Professor: desleixo na formação de Professores, sobretudo no que diz respeito à formação privada, esvaziamento de competências e responsabilidades, desautorização e humilhação do ponto de vista laboral e salarial. Neste contexto, vemos o Professor como um mero boneco numa sala de aula sem qualquer laivo de livre arbítrio, que faz estritamente o que lhe mandam e que tenta, de todo e qualquer jeito, preparar os seus alunos para as questões-tipo de exames. A figura do Professor, ao invés de ser respeitável e socialmente admirável, é uma figura sinistra e incapaz que toda a comunidade educativa vê com olhos de desconfiança e que, por isso mesmo, o sistema trata de sobrecarregar com burocracia protocolar.
A classe dos Professores devia ser uma classe de excelência, devia ser uma classe que se constituísse como sustentáculo científico e cultural da sociedade. O que estamos a construir, todavia, parece ser o contrário.
O entendimento deste fenómeno, da situação laboral dos Professores, é indissociável da questão dos exames com que abri o post. Uma coisa surge no seguimento da outra. Nisto, como no resto e na maioria dos casos, a filosofia do sistema não é mais que uma justificação para se atingirem objetivos sociais muito concretos. Ao contrário do que se julga e do que nos fazem crer, a filosofia não vem primeiro, vem depois.