A época dos animais de estimação
À hora a que escrevo este texto, testemunhamos o final do ano de 2018. Há duas centenas de anos, talvez menos, as ruas das cidades deste país eram partilhadas entre pessoas e animais. Os animais eram parte fundamental do sistema de transporte que permitia às pessoas deslocarem-se e transportarem bens e mercadorias. Como resultado desta proveitosa simbiose, as vias de comunicação eram compostas de uma mistura de terra batida e excremento animal, uma combinação não muito favorável à salubridade pública.
A gradual substituição do animal pelos veículos motorizados teve esta vantagem indelével: as ruas passaram a ser mais limpas e o ambiente envolvente mais higiénico e saudável. Sendo certo que outras medidas, como a generalização do saneamento básico e a canalização de água potável, tiveram uma preponderância maior neste domínio, é absolutamente insofismável que a drástica redução de animais na via pública teve uma contribuição assinalável. Aliás, indo mais além, analisando o que constituía prática comum nas aldeias deste país onde a interação diária entre pessoas e animais era ainda mais promiscua, os ganhos em termos de saúde pública, de propagação de doenças, de longevidade da vida humana, foram determinantes.
Hoje, na passagem para o ano de 2019, assistimos a uma experiência diferente. Faltam sensivelmente dez minutos para as sete da manhã deste sábado e eu sei — tenho a certeza — que, quando sair para ir comprar o pão para o pequeno almoço na padaria ali da esquina, vou ter que suster a respiração numa boa parte do caminho e tomar muita atenção ao pavimento para manter as solas dos sapatos limpas. O passeio desta rua onde vivo, em pleno centro da cidade, encontra-se banhado a urina matinal de cão e são mais os metros quadrados contendo fezes de animal do que os que se encontram limpos.
Não é objetivo deste texto apresentar uma queixa. Longe disso. Trata-se apenas de uma constatação: tal como nos séculos anteriores ao décimo quarto se gritava “Água vai!” e se despejava “águas lixosas” pela janela diretamente na via pública, tal como até praticamente ao século XX cavalos, burros, parelhas de bois e outros animais partilhavam a via pública com o ser humano e nela deixavam os seus naturais dejetos incontidos, hoje, no século XXI, praticamente no ano de 2019, achamos normal fazer dos passeios públicos, dos jardins e espaços verdes, as retretes dos nossos animais.
Entretanto, criou-se a regra de etiqueta facultativa de se recolher os dejetos com um saco de plástico. Pouca gente o faz e, para não o fazer, levam os cães de noite ou madrugada para evitar testemunhas. Mas mesmo fazendo-o, isto é, mesmo recolhendo o dejeto do passeio com um saco de plástico, não deixa a coisa de ter sido feita, não é? O passeio não deixou de ter sido conspurcado com dejetos de animais e não deixou de estar sujo. Apenas está menos sujo. Agora suponham que uma criança que circula ali, naquele mesmo espaço, tropeça e cai, apoiando as mãos no pavimento meticulosamente emporcalhado por dejetos de animais. Não há problema, deve haver, afinal, algum antibiótico para estas coisas! A liberdade de um cão e do seu dono é mais importante do que a saúde e bem estar de uma criança. Dito desta forma, até custa a interiorizar.
Vivemos a era dos animais domésticos que, tendo as suas virtudes que não menosprezo, acarreta consequências muito sérias, pois vem associada a uma sociedade cada vez mais isolada, sozinha e antissocial. O animal parece adquirir mais direitos do que a pessoa humana, embora vivam frequentemente confinados em apartamentos minúsculos. Trata-se de uma ilusão, todavia: o animal continua a servir unicamente os interesses dos seres humanos. Hoje em dia, esses interesses já não são o puxar uma carroça ou outra coisa qualquer. São a simples necessidade de afeto que os seus donos não conseguem adquirir de outra forma, socializando, porque não podem, porque não querem ou porque já desistiram de o fazer.