A declaração mais esclarecedora
Cavaco Silva falou e disse tudo. Ao falar Cavaco revelou-se, as palavras simples e torpemente pronunciadas, como é seu apanágio, desnudaram-no, mostraram o género de alma que anima aquele corpo de movimentos rígidos e calcificados. Para Cavaco ainda que um partido como o Bloco de Esquerda ou como o Partido Comunista Português obtivesse maioria absoluta parlamentar, ainda assim não deveria ser indigitado para formar governo, porque quebraria “compromissos internacionais” aos quais, segundo a sua visão, o país, o povo, está amarrado quer queira, quer não queira.
Cavaco Silva não é o Presidente da República. Cavaco Silva é o presidente dos compromissos internacionais, é o presidente dos “credores”, dessa alcateia, desse bando de abutres, de necrófagos sem cara, que se alimentam da carcaça do país que somos, do país que ele, Cavaco Silva, ajudou a criar no final do século XX. Cavaco Silva é o presidente de todos esses e dos “mercados” também, mas não é o Presidente da República Portuguesa.
A figura do Presidente da República não existe nem foi criada para tomar partido ou para influenciar as escolhas políticas do país. O Presidente da República apenas existe para supervisionar o governo e o país no estrito contexto da Constituição da República. E lá está tudo dito, bem claro e transparente, assim ele a conhecesse. A indigitação do Primeiro-ministro não é uma questão de tradição, é uma questão parlamentar bem tratada no texto da Constituição.
Mas para o Presidente da República, Cavaco Silva, a Constituição é um pormenor, não é mais que uma nota de rodapé. Já o provou mantendo no poder um governo que violou cerca de vinte vezes essa mesma Constituição durante o seu mandato. O Presidente, voltamos ao princípio, está lá para defender os interesses dos outros, não necessariamente portugueses, daquela minoria que leva mais de metade do PIB português a cada ano. São esses: os mercados, os credores, salvaguardados pelos acordos e compromissos internacionais.
O Presidente da República pode indigitar quem quer que lhe apeteça. É essa a sua prerrogativa. O que não pode é tomar partido de forma descarada. O que não pode é justificar-se da forma como se justifica. Mas ainda bem: assim as coisas são mais claras.
A coligação e o Presidente jogam na deserção dos seguristas do PS para fazerem passar o programa de governo à socapa. Até pode ser que isso aconteça. Seria, contudo, extremamente interessante assistir ao que se seguiria se isso não acontecesse, isto é, se o parlamento chumbar este governo minoritário. Será que Cavaco teria a falta de pudor para promover um governo de gestão? Ou de promover novas eleições para forçar uma maioria de direita? Estaremos cá para ver, porque a indecência ameaça seriamente não ficar por aqui.