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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

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A propósito de Trump: um ensaio sobre como o mundo muda de opinião... do dia para a noite

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Donald Trump tem setenta anos de vida. Durante os últimos quarenta anos, pelo menos, foi uma estrela americana. Não me refiro à estrela no passeio da fama de Hollywood com o seu nome. Não, refiro-me à identificação que sempre existiu entre a sua pessoa e aquilo que a América é e aquilo que a América representa.

 

O arranha-céus de Donald Trump, chamado de Torre Trump, é considerado como um símbolo do sonho americano, um símbolo do estilo de vida americano, um símbolo do sucesso e um símbolo do capitalismo. Trump, o self made billionaire, que de self made não tinha nada, era entrevistado por todos — todos queriam descobrir o seu segredo para o sucesso — e pontificava em todos os programas de todos os canais.

 

Durante os últimos quarenta anos ninguém foi capaz de apontar o dedo a Donald Trump, nem àquilo que Donald Trump representa. Nem que era um depravado, nem que era um malcriado, nem que era um xenófobo ou racista, nem que não olhava a meios para atingir os seus fins, nem... nada.

 

Trump, o símbolo, era isso mesmo, como uma luz que encandeava a vista de quem quer que para ele dirigisse o olhar. Quase todos elogiavam a audácia do homem, o seu saber fazer, o seu saber mandar. Quase todos queriam seguir o seu exemplo. Quase todos queriam ser como ele. No “quase todos”, incluo a maioria dos americanos, dos emigrantes, dos integrantes de minorias étnicas ou sociais, uma boa parte da Europa, a direita, os capitalistas, os liberais.

 

A abjeção de programa de entretenimento que Trump criou, o reality show The Apprentice, bateu máximos de audiência ao longo das suas catorze temporadas. Também aqui, as pessoas adoravam Trump, rejubilando a cada “You're fired!”. Durante quarenta anos, “Trump” e “América” foram palavras sinónimas.

 

É interessante verificar como quase todos, os mesmos “quase todos” dos parágrafos pretéritos, parecem ter invertido a sua opinião relativamente ao homem, de tal modo que na maioria dos círculos mediáticos nem sequer há lugar a discussão. Devemos desconfiar sempre de todos aqueles que mudam de opinião do dia para a noite.

 

É nesta conjuntura que Trump aparece nestas eleições como o candidato antissistema. E é notável que alguém totalmente ligado ao sistema, alguém que é um claro produto do sistema, alguém que é um conservador puro, como Trump o é, tenha conseguido tal denominação.

 

Por mim, não consigo observar estas eleições americanas com o dramatismo que a comunicação social as está a vender. De acordo, se Trump vencer teremos um ser humano perigoso no “poder” americano, mas não mais perigoso do que a alternativa Hillary Clinton. Trump é simplesmente mais rude, mais verbal e menos hipócrita. Seguramente, não teremos menos guerra, menos expansionismo, menos condicionamento económico e político sobre os povos com Clinton do que com Trump. Quem advoga o contrário está rotundamente equivocado. Aliás, basta observar a total ausência de diferenças substantivas entre as políticas de Bush e Obama.

 

Por outro lado, só quem anda distraído é que acredita que o Presidente dos Estados Unidos da América manda alguma coisa sobre as grandes diretivas do país. Quem manda é quem sempre mandou. Quem manda são as corporações. Quem tem uma palavra a dizer é a burguesia.

 

Para mim, Trump é o que sempre foi, isto é, uma escória da humanidade, um produto deste sistema selvagem a que se chama de capitalismo. Discordo dele visceralmente. Mas o que me faz discordar dele sempre existiu. Os princípios e o caráter de Trump não nasceram ontem com a sua candidatura à Casa Branca. Por isso, esta mudança de opinião relativamente a Trump operada nas massas tem muito de falso, sobretudo quando a comparação é... Hillary Clinton, farinha feminina do mesmo saco político de Trump. Por ventura, para a maioria das pessoas, a política será uma mera questão de formalismo e não de substância.

 

De notar ainda o patético apelo ao voto feminino por parte de Hillary Clinton. Obama também o fez, por duas vezes, relativamente ao eleitorado afro-americano. A política americana está reduzida a esta fantochada. A este propósito, relembro as sábias palavras de Susan Sarandon: “Não voto com a minha vagina”.

publicado às 17:16

Colégio eleitoral vs comité central

A maioria das pessoas não sabe que o sistema de eleição do Presidente dos Estados Unidos da América não é um sistema de eleição direta. Com efeito, não é a maioria dos votos dos americanos que decide quem será o seu Presidente. O que os seus votos decidem é a composição de um colégio eleitoral constituído, em cada estado, por um número de cidadãos igual ao número de congressistas desse estado. São esses cidadãos, que compõem o colégio eleitoral e que são convenientemente designados por “eleitores”, que escolhem através do seu voto o Presidente e o vice-Presidente dos Estados Unidos da América. Tem sido sempre assim e assim também será na eleição do próximo dia 8.

 

Este facto não deixa de ser surpreendente.

 

Que os Estados Unidos manipulam a democracia a seu bel prazer, não é propriamente novidade. Que interpretam este e outros conceitos, dos quais se julgam guardiões, da forma que mais lhes convém, também não. Observe-se o que os Estados Unidos procuram impor ao mundo e as justificações que encontram para invadir e bombardear estados soberanos — ao mesmo tempo que aceitam as maiores atrocidades de estados considerados como aliados —, em contraponto com as liberdades que simultaneamente sonegam aos seus próprios cidadãos a propósito de supostas “ameaças terroristas”, por exemplo.

 

Em plena guerra fria, os regimes comunistas de leste eram ferozmente criticados — e com razão — pelos seus sistemas “democráticos enviesados” a que chamavam de “centralismo democrático”: o sistema de partido único elegia um comité central que, então, elegia a figura do Presidente. Em tese, qualquer cidadão podia pertencer ao partido e eleger indiretamente os membros do comité central. Todavia, tratava-se de um sistema limitado e fechado. No ocidente, trilhava-se já o caminho das democracias representativas abertas, percebia-se já a cândida perfeição das eleições diretas, e uma tal conceção de partido único com eleição indireta não podia ser considerada como nada mais que algo de natureza completamente descabida e inaceitável.

 

O que é surpreendente é exatamente isto, é esta dualidade de critérios, estas avaliações parciais. Os Estados Unidos da América têm formalmente um sistema político idêntico ao que criticavam no bloco soviético. Na América não existe um partido único, é verdade, mas os dois partidos com acesso objetivo ao poder são essencialmente idênticos do ponto de vista político, sendo patrocinados pelas mesmas empresas e pelos mesmos interesses económicos. O sistema de votação é idêntico: um sistema de eleição indireto em que se elege um colégio eleitoral, em vez de um comité central. Aqui, há mesmo uma agravante: é que, ao contrário da escolha de um comité central, perfeitamente transparente, em que quem elege sabe quem está a eleger, os critérios para a escolha do colégio eleitoral são diferentes de estado para estado, podendo não ter qualquer relação com o voto pretérito dos cidadãos. Em Nova Iorque, por exemplo, o estado escolhe para o colégio eleitoral quem entende ser um “cidadão de destaque” no seio da comunidade, sendo esta escolha altamente subjetiva e potencialmente controversa.

 

No fim de contas, o objetivo é o mesmo e é evidente: limitar a democracia e proteger o poder instalado do escrutínio popular. Ao mesmo tempo que o mundo mediático se entretém com eleições de fachada, o poder real que governa a América mantem-se, não sofre alterações, cristaliza-se. É realmente uma pena que, no meio de tanta discussão sem sentido entre Clinton e Trump, não se chame a atenção para aquilo que importa e tenhamos que encontrar a informação relevante quase que por acaso. Trata-se de mais uma evidência de como a comunicação social é parcial e funciona basicamente como uma cadeia de transmissão do poder para condicionar a formação de opinião das massas.

 

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publicado às 09:44

Se conduzir, não ouça mentecaptos

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Hoje estava a ouvir uma senhora na rádio que dizia que os desafios de Guterres enquanto Secretário Geral das Nações Unidas eram enormes por, segundo ela, ter que lidar com uma política expansionista da Rússia na Crimeia e na Síria. Realmente, de quando em vez, muito mais frequentemente do que seria desejável, apanha-se com cada mentecapta nos media que chega a ser aterrador. Talvez radique aqui a razão de ser de muitos acidentes de viação. Confesso que, eu próprio, dei um pronunciado ziguezague na via não tendo chocado com outra viatura por uma unha negra.

 

Para a mentecapta senhora, que refira-se, a talhe de foice, é professora de faculdade!, o problema do mundo é a Rússia ter uma política expansionista particularmente na Síria! Não, a política externa dos Estados Unidos nem é expansionista nem tem qualquer problema. As guerras criadas ao longo deste novo milénio pelos americanos não têm qualquer problema. O problema é a intervenção russa.

 

Sem a intervenção russa, a Síria estaria seguramente dominada por esta altura pelo Estado Islâmico. A intervenção russa permitiu libertar, aliás, muitas cidades importantes e estratégicas do controlo dos terroristas. Relembro aqui a libertação da cidade de Palmyra.

 

Mas para a mentecapta senhora, o problema de António Guterres é a Rússia... É preciso ter cuidado: se conduzir, não ouça mentecaptos. Pode originar sinistros.

publicado às 21:23

Pedro e o Lobo

Pedro e o Lobo é o nome de uma célebre história infantil contada, virtualmente, a todas as crianças, com o objetivo de fornecer instrução sobre a mentira, a sua repetição e as suas consequências[1]. Pedro é um pastor que, aborrecido com a sua tarefa, resolve arreliar a população da aldeia com a mentira de que o Lobo está atacar o rebanho. A população acorre ao local apenas para verificar que havia sido enganada, ao mesmo tempo que Pedro se diverte com a situação. A experiência é repetida um certo número de vezes com idêntico desfecho até ao dia em que, por coincidência, o Lobo efetivamente ataca o rebanho e, todavia, a população não acorre em auxílio de Pedro por pensar estar a ser vítima de mais uma partida. Todo o rebanho é perdido.

 

Quando pensamos no assunto, chega a ser surpreendente constatar que, não obstante toda a criança portuguesa ter ouvido contar a história de Pedro e o Lobo em algum momento da sua infância, a população portuguesa adulta se deixe engodar, uma e outra vez, em semelhantes esquemas de embuste.

 

Pedro! Onde está o lobo?

 

Primeiro foi o Afeganistão. Aí, desculpámos os americanos por causa do 11 de Setembro, ainda fresco e dramático na memória. É verdade que depois viemos a saber que o 11 de Setembro havia sido também ele uma fraude, com uma das torres a cair por simpatia sem que nenhum avião tivesse com ela chocado, só porque a outra também havia caído. Os americanos estavam assustados e nós desculpámos o facto de eles terem ido para o Afeganistão bombardear aquilo a torto e a direito. Chacinaram civis em fartura, tendo ficado famosos os bombardeamentos a casamentos e outras cerimónias festivas. Terroristas? Talvez tenham apanhado alguns, por engano e que, com toda a certeza, nada tinham que ver com a América e com os americanos, a não ser o facto de terem sido treinados e armados por eles para combater os soviéticos no final do século XX ou de serem descendentes destes. O suposto chefão dos terroristas, que se dizia com toda a segurança habitar aquelas montanhas afegãs, não foi encontrado.

 

O Afeganistão nem teve tempo de ser digerido e veio o Iraque. Desta vez, ainda com uns resquícios de raiva e orgulho ferido pelo 11 de Setembro, adicionou-se o facto de haver armas de destruição maciça e de se ter descoberto evidências chocantes de que Saddam era um ditador sanguinário com intenção de as usar. O número de vítimas civis cresceu exponencialmente. Ao contrário dos afegãos que habitavam o interior de montanhas e que são de natureza nómada, os persas não tinham muito como fugir na sua milenar planície. Atingiram-se novos recordes no número de escolas e hospitais destruídos. Diziam os americanos, então, que as forças iraquianas juntamente com os terroristas se escondiam nesses locais e, então, era necessário bombardear! No final da guerra, quer dizer, do grosso do bombardeamento, o Iraque tornou-se num país “sem rei nem roque”, sem estabilidade e sem governo representativo das populações. Estabeleceu-se apenas um governo fantoche para fazer as vontades aos americanos no que concerne aos seus objetivos económicos e militares. De notar a não menos relevante destruição de património da humanidade, como antiquíssimos palácios persas, bem como o saque desavergonhado — ao bom estilo do nazismo — de obras de arte de incalculável valor de reputadíssimos museus iraquianos.

 

Depois do Afeganistão e do Iraque, veio a Líbia. Substitua-se Saddam por Kadafi e tudo o que foi dito anteriormente poderá ser aplicado de novo no presente parágrafo. Kadafi era um facínora que perseguia e exterminava o seu próprio povo!, diziam eles. Não vale a pena continuar. A Líbia nunca mais foi país depois da intervenção dos Estados Unidos e dessa vil e pérfida coligação chamada de NATO.

 

A cada intervenção dos Estados Unidos, isto é, a cada mentira de Pedro, o jovem pastor, a comunicação social ocidental, particularmente a portuguesa, fez eco obediente, acéfalo, da narrativa imperialista americana. A cada mentira, a comunicação social europeia e os seus governos acudiram em auxílio e apoio dos Estados Unidos. Após cada mentira ser revelada pelas evidências da realidade, não houve lugar a qualquer retratamento ou pedido de desculpas. Houve primeiro uma procura derradeira por pretextos vazios justificativos da barbárie seguida de conveniente amnésia.

 

No momento em que escrevo, uma nova mentira é-nos vendida pelos mesmos de sempre: agora é a Síria que tem um governo que maltrata o seu próprio povo, mas há um grupo de “rebeldes” apoiado pela América que está a fazer tudo por tudo para colocar um fim à questão. Todavia, o governo Sírio, segundo dizem eles, apoiado pela malvada e não confiável Rússia, não se cansa de bombardear a pobre população, incluindo hospitais e escolas!

 

A comunicação social consegue fazer eco de tudo isto. Não se ouve a si própria, não lê o que publica nos seus jornais. É deprimente. E é deprimente que o próprio povo ouça e leia as mentiras e que acabe por aceitá-las, derrotado pelo cansaço e pela insistência.

 

Nas televisões, sucedem-se os casos de criancinhas ou bebezinhos resgatados de escombros causados pelos bombardeamentos russos e sírios, como se não existissem iguais situações do outro lado. Sucedem-se também os apelos dos rebeldes à Europa e à comunidade internacional, tecendo-se uma aura de vitimização idiota sobre os mesmos. O tratamento dado à questão é totalmente parcial a favor de quem provou ser mentiroso compulsivo.

 

Note-se que os rebeldes mais não são que mercenários pagos e armados pela América para criar o caos na Síria. Atente-se ainda na criação do autoproclamado Estado Islâmico, nascido do caos criado pelos Estados Unidos na região, intervenção após intervenção, e potenciado pela deserção, a dada altura do conflito sírio, de muitos dos mercenários que estavam a soldo da América. Nada disto é dito na comunicação social. Talvez esta seja a melhor das razões para acreditarmos que deve ser a verdade.

 

Ainda bem que a Rússia está a intervir na questão síria. Ainda bem. Pode ser que, assim, a Síria não se torne num Afeganistão, num Iraque ou numa Líbia. Resta apenas perguntar, quantas mais mentiras terá Pedro de repetir, para que a população deixe de acreditar nele?

 

[1] Não confundir esta história com uma outra versão de Pedro e o Lobo, oriunda da Rússia e celebrizada pela versão musical composta por Prokofiev em 1936.

publicado às 08:54

O vendedor de ilusões

Ouvir o discurso de Barack Obama na convenção do Partido Democrata americano é a cereja no topo do bolo. Suponho que a democracia americana tem tanto valor quanto o valor que a sociedade atribui a este tipo de espetáculo demagógico, a este fogo de artifício vazio de política propriamente dita. Pergunto-me o que teria aquela gente toda a dizer se, do outro lado, não pontificasse a sinistra figura de Donald Trump. Nada? Provavelmente.

 

Algumas conclusões:

 

1) A política norte-americana está reduzida a espetáculo mediático puro, completamente desapossada de qualquer discussão efetivamente política, sendo certo que o cargo de Presidente dos Estados Unidos da América já foi engenhosamente formatado para ter o seu real poder muito limitado.

 

2) Os políticos norte-americanos são menos importantes que atores ou cantores pop. Este facto não deixa de ser irónico.

 

3) A resposta do Partido Democrata ao Partido Republicano de Trump é combater palhaçada com palhaçada.

 

4) Barack Obama, com o seu discurso de apoio a Hillary Clinton — enterrada até ao pescoço nas mais fétidas promiscuidades com os lobbies e os interesses que governam os americanos —, mostra aquilo que é e aquilo que sempre foi: um vendedor bem-falante de ilusões que, para o fazer, é capaz de nos mentir descaradamente.

 

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publicado às 08:42

Devaneios matinais de sábado

A esta hora que escrevo estende-se uma manhã de verão cálida e luminosa. Sábado não poderia ser antecipado de uma melhor e mais auspiciosa forma. Acordei, portanto, com recarregada energia e redobrada confiança na humanidade.

 

Penso que, demasiadas vezes, temos pouca fé na humanidade. Concedemos-lhe escasso crédito. E a humanidade é uma coisa extraordinária em geral, mas também em particular.

 

Veja-se o caso de David Dinis. David Dinis é uma individualidade extraordinária. Devíamos ter orgulho em termos tão ilustres portugueses como ele. Reparem no seu percurso: durante seis anos estudou jornalismo na Católica — terminou em 1999 — e, desde logo, devido ao seu extraordinário brilhantismo, claro está, assumiu em setembro desse ano o cargo de Editor Político no defunto Diário Económico! Seguiram-se Jornal de Notícias, Diário de Notícias e Jornal Sol, em idênticas funções. Depois, mais um salto de canguru: diretor no Observador, diretor da rádio TSF e, agora, ao que parece, do jornal Público! Que brilhantismo!

 

David Dinis é uma personalidade admirável! Gostava de conhecer o seu currículo em detalhe, mas também não é preciso: tenho a certeza que David Dinis terá rebentado a escala em todas as cadeiras que frequentou na universidade. Só desse modo é que é possível, penso eu, replicar tal percurso profissional. Aos milhares de jovens licenciados do jornalismo em Portugal que não conseguem arranjar emprego ou que andam a estagiar de graça e a tirar fotocópias nas redações dos jornais: ponham os olhos em David Dinis, concedam-lhe uma vénia e sintam-se inspirados pelo seu exemplo!

 

Num outro assunto, completamente não relacionado com o anterior, fascinam-me as histórias do folclore afro-americano daquela zona do Louisiana, Mississippi, onde um pobre coitado, sem nenhum particular encanto ou qualidade, vende a alma ao diabo a troco de um qualquer dom especial — não interessa qual. Contam-se essas histórias a propósito dos grandes músicos de Blues para tentar justificar a sua arte extraordinária que, por ser tão extraordinária, só poderia ter uma origem sobrenatural. Normalmente, o Diabo aparece em forma de mulher atraente num cruzamento de estradas poeirentas após ter sido feita uma oferenda apropriada. Concedido o dom, ao homem é também dado um prazo para dele usufruir, findo o qual, a sua alma será resgatada pelos cães do inferno.

 

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Estas histórias fazem parte de um folclore local que inspira a cultura da região, incluindo a toada melancólica característica dos Blues. Como todas as histórias deste género, não valem pela sua autenticidade. O seu valor reside na moral subjacente que pretendem transmitir, na ligação metafórica que existe entre fábula e realidade.

 

Não raras vezes, parece-me que muitas pessoas do mundo real operam uma espécie de venda da sua alma. O que é a alma se não aquilo que de mais íntimo temos? O que é a alma se não aquilo que pensamos? E o entendimento deste processo revela-se útil para a compreensão, por sua vez, daqueles casos extraordinários que conhecemos na sociedade e que muito dificilmente conseguimos explicar se não com recurso ao sobrenatural.

 

Se observarmos com atenção estas individualidades de percurso extraordinário, verificamos que, muitas vezes, trata-se de pessoas de pensamento único, de discurso cristalizado, sem vestígio de bom senso, que fazem tudo por tudo para transmitir e fazer valer uma certa ordem de pensamento. Quando prestamos atenção, verificamos que aquele pensamento e aquele discurso não são verdadeiramente delas, são de outras pessoas. Os “diabos” ditam o que deve ser feito, o que deve ser escrito e difundido. Em troco, conferem-lhes as mais altas posições. Isto, claro, até ao momento de cobrar a alma devida, quer dizer, de proceder à sua substituição por alguém que seja mais jovem e mais inocente. Os “diabos” procuram sempre a carne mais fresca.

publicado às 09:06

Vem aí mais uma brilhante ideia dos iluminados neoliberais

Chama-se Transatlantic Trade and Investment Partnership, abreviado por TTIP e traduzido para português como Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, e é a última brilhante ideia dos iluminados neoliberais para, dizem eles, impulsionar a economia norte americana, a europeia e, até mesmo, a mundial!

 

O acordo veio na algibeira de Obama na sua última visita ao velho continente e está a ser negociado da forma como os capitalistas mais gostam, em segredo, completamente a leste do crivo político e do horizonte democrático. Os outorgantes de tal acordo serão os Estados Unidos da América e a União Europeia, a qual, nestas questões, comporta-se claramente como uma federação e não como uma união, decidindo em nome de todos os seus estados membros. Aliás, é precisamente esse o objetivo do TTIP: passar por cima da vontade dos povos e impedir que os estados aderentes interfiram nas negociatas económicas estabelecidas entre a burguesia transatlântica.

 

Simultaneamente, os proponentes do acordo apresentam as melhores e mais otimistas projeções. Note-se que efetivamente é sempre assim. Foi assim com a criação da União Europeia, com o Euro, com cada um dos tratados de livre comércio assinados ao longo dos anos: as melhores projeções e intenções banhadas de uma cândida e subliminar ideia de inevitabilidade.

 

Os resultados, porém, nunca foram muito animadores. Estamos dotados, com efeito, de privilegiadas condições para observarmos à nossa volta os resultados de tais acordos: concentração da riqueza sobre os países mais fortes, aumento das desigualdades económico-sociais dentro de cada país e entre países, e retrocesso generalizado. Isto é o quadro geral com o qual podemos contar se o TTIP vier a ser aprovado.

 

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Não obstante, quando uma das partes é constituída pelos Estados Unidos da América, é justo que prestemos atenção a um outro tipo de problemas. Refiro-me, em particular, à questão dos organismos geneticamente modificados (GMO). Os Estados Unidos já conseguiram, pela sua enorme influência, infetar uma grande parte dos terrenos de cultivo mundiais com os seus produtos geneticamente modificados. Esses agricultores que aderiram aos GMO tornaram-se escravos da indústria americana já que os seus terrenos converteram-se estéreis ao cultivo de quaisquer outros produtos que não GMO's. Adicionalmente, tornaram-se também dependentes das panóplias de inseticidas, herbicidas e pesticidas que apenas a indústria americana produz e, sem os quais, a produção dos GMO's é impossível. Mais grave, todavia, é o facto da população mundial estar submetida, quase sem alternativa, ao consumo de tais produtos. Ainda subsistem entraves à generalização destas práticas em solo europeu e neste particular, estou seguro, este TTIP tratará bem do recado.

 

A propósito, surgiu a notícia de que os Estados Unidos da América preparam-se para libertar no arquipélago de Califórnia Keys, a sul da costa da Califórnia, milhões de insetos geneticamente modificados, dizem eles para combater as doenças tropicais como a malária e a dengue. Dizem que não há perigo, que é só um inseto que pretendem dizimar, pois o inseto GMO é infértil. Brincam com o fogo. Subvalorizam a importância daqueles insetos no contexto da biodiversidade. Atacam um problema não pela raiz, não pela origem do mesmo, mas remediando, isto é, criando outro potencial problema. Tudo isto é muito grave. E é com este tipo de mentes alienadas e dementes que estamos a negociar o TTIP.

 

Aedes aegypti mosquito

 

publicado às 10:26

Donald Trump e a rede de estereótipos

Todos os “enviados especiais” e todos os “comentadores especializados em política internacional” concordam e afinam as suas opiniões sobre o assunto do momento: Donald Trump. Não existe uma ideia que introduza uma dissonância na harmonia previamente estabelecida: Trump é uma surpresa, Trump é um fanático não representativo da multiculturalidade americana e dos valores daquele país e, indubitavelmente, perderá mais cedo ou mais tarde.

 

A natureza das surpresas radica frequentemente nos quadros mentais de que dispomos para lermos e interpretarmos a realidade que nos rodeia. Quando esse quadro intelectual não é mais do que uma rede de estereótipos, então fica difícil observar com nitidez, fica difícil estabelecer relações um pouco mais complexas, estabelecendo-se, deste modo, um terreno fértil para sermos constantemente surpreendidos ainda que pelos acontecimentos mais triviais.

 

É exatamente isso que sucede com Donald Trump e com as análises que dele são feitas. É que os Estados Unidos da América constituem um país muito grande, um país de cinquenta estados, qualquer um dos quais maior do que um país europeu médio, todos diferentes entre si, com populações também muito diferentes. O que se poderá dizer a respeito disto a partir de um quartinho de hotel de Nova Iorque? Ou, pior, o que se poderá deduzir a este propósito a partir do que é dito por quem esteve hospedado no tal quartinho de hotel nova iorquino?

 

Diga-se o que se quiser, a América é a propaganda que dela é feita, é o estereótipo, já centenário, que é cuidadosamente construído em cada filme de Hollywood, em cada episódio de série exportada, em cada lugar comum, para os quais todos — os subordinados ao capitalismo — contribuímos.

 

E assim, da noite para o dia, o fenómeno Trump apanha-nos de surpresa aparvalhada. “Como é que a América dos imigrantes, da liberdade e das oportunidades aceita um tipo destes?”, perguntamos.

 

Mas a América não é só isso. A América da liberdade também é a América que tão tarde aboliu a escravatura e que até assistiu a uma guerra civil por esse motivo. A América também é o país das armas de fogo indiscriminadas e da pena de morte. A América dos imigrantes também é também a América da xenofobia, do racismo e da ku klux klan. A América das oportunidades também é a América da falta de solidariedade inerente à economia liberal de competição desenfreada. A América das oportunidades também é a América das desigualdades profundas e das classes socioeconómicas.

 

Isto mesmo seria possível vislumbrar desde a janela daquele quartinho de hotel de Nova Iorque, assim o enviado especial da TV ou da agência de notícias dobrasse o pescoço para o outro lado, deixasse o olhar fugir dos arranha-céus cinzentos de Nova Iorque. Logo ali, a seguir ao Rio Hudson, veria os guetos de Newark, em Nova Jersey. Também eles são a América. Também eles contêm americanos.

 

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Como explicar o fenómeno Trump, então? Não precisa de explicação. Trump corporiza o ideal, o famigerado “sonho americano”, o modo de vida, um certo modo de compreender o mundo que tem tanto de sedutor quanto de ignorante. A pergunta certa não será “Como é que Trump está a ganhar?”, mas antes “Como é que Trump poderá perder?”, pois onde se sustentaria a indústria de propaganda de Hollywood se não nos ombros de Trump, ou de figura semelhante? Trump é a América por ora e, pelo menos, até ao dia em que os americanos decidam que o seu país deva ser alicerçado em princípios filosóficos muito diferentes daqueles que os têm governado. Enfrente-se a coisa de frente para lá da rede de preconceitos ocos que turvam a nossa visão sobre a América e sobre os americanos e, então, poderemos produzir opiniões lúcidas sobre o fenómeno Trump e antecipar as constantes surpresas.

 

Alguma coisa do que escrevi encontra-se por aí, distribuída por aí, entre páginas de livros e pedaços de filme. Não está nas primeiras páginas, mas vem ao de cima nas entrelinhas. Está n' As Vinhas da Ira e está nos Gangues de Nova Iorque, por exemplo, mas nem a isso os nossos enviados especiais e comentadores tiveram acesso ou tiveram a capacidade de interiorizar.

publicado às 14:01

O que fez Obama?

Falava há uns dias com uma querida amiga sobre o legado de Obama como Presidente dos Estados Unidos da América. Dizia-me ela: “Obama sempre foi melhor do que Bush...”; ao que eu retorqui: “Foi? O que fez Obama?”. A conversa prosseguiu sem que surgisse uma resposta clara à minha inocente pergunta.

 

“O que fez Obama?”.

 

Foi melhor do que Bush? Eventualmente. Mas será que foi mesmo? Será que, para lá da sua eloquência e superior capacidade oratória, existem diferenças políticas realmente substantivas?

 

Bush ficou marcado pelo onze de setembro e pela sua selvática e idiota reação que empurrou a América e meio mundo para bombardeamentos sem fim no Afeganistão e no Iraque. Mas Obama fez essencialmente o mesmo na Líbia e, agora, na Síria. Pode não ser tão violento nos métodos, preferindo armar e pagar a grupos de mercenários para por ele sujarem as mãos e causarem o caos político nesses países, mas essencialmente trata-se da mesma coisa. No mais, em termos de política externa, são como faces da mesma moeda.

 

Obama veio com a ilusão de ser o primeiro Presidente da América negro e, a reboque, trouxe inúmeras promessas, três das mais relevantes foram: um sistema público de saúde (obamacare), o retirar as tropas do Iraque e do Afeganistão e o encerramento da prisão de Guantanamo (o gulag norte-americano). A pouco tempo de terminar o seu segundo mandato, o saldo de tudo isto resume-se... ao facto de Obama ter sido, com efeito, o primeiro Presidente da América negro. Sim... a lista termina aqui.

 

Há quem diga que enfrentou e derrotou a seríssima crise financeira e económica, a crise do subprime, que assolou a América e que contagiou o resto do mundo capitalista. Teve o azar de ter tido que enfrentar uma destas crises cíclicas que afetam o capitalismo. Tudo isto é verdade, mas também é verdade que resolveu o problema, por ora, à custa de um exponencial aumento de dívida. Acrescente-se que a dívida americana, se já era um monstro incontrolável, com Obama tornou-se numa besta de duas ou três cabeças. Convenhamos que resolver uma crise económico-financeira é muito mais fácil se pudermos proceder a injeções virtualmente ilimitadas de capital no sistema.

 

Há, contudo, uma singular e preciosa ação de Obama que ficará para sempre nos anais da História e que talvez apenas ele pudesse ter levado a cabo e que consistiu no retomar das relações diplomáticas dos Estados Unidos da América com Cuba. Já não sobrava qualquer argumento justificativo para tal atitude e, com o patrocínio do Papa Francisco, bastou a Obama tomar esse evidente passo, todavia ainda grotescamente difícil, enfrentando uma violenta oposição interna. Obama ficará na História política por isto. O facto de ser o primeiro negro a ocupar o cargo tornar-se-á apenas numa mera curiosidade antropológica.

 

Poderemos sempre argumentar sobre o papel de Obama no processo. Terá sido um agente mais ativo ou mais passivo? Ou terá sido simplesmente apanhado pelo discorrer indelével das areias do tempo? Ou do destino?

 

Os Estados Unidos só voltarão a dialogar connosco quando tiverem um presidente negro e quando houver no mundo um Papa latino-americano.

— Fidel Castro, 1973

 

 

publicado às 09:23

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