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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Esta maioria absoluta do PS ainda vai ficar na história deste país...

Este estado falha miseravelmente em tantos domínios diferentes que torna-se penoso assistir ao desenrolar da governação deste país. Incapaz de antecipar os problemas, agravando todas as condições materiais do país para poder fazer frente aos mesmos, prometendo milhares de medidas depois dos problemas se darem e se instalarem, para, finalmente, deixando a coisa cair de podre do ramo da árvore, não fazer rigorosamente nada, não mudar rigorosamente nada de substantivo, não gastar um cêntimo que seja e ainda conseguir poupar com a crise. Este é o plano que já revolta as entranhas de tantas vezes o vermos repetido crise após crise, surpresa após surpresa, histeria após histeria.

Agora são as urgências e as consultas de pediatria fechadas, desativadas pelo facto de andarem, em normalidade, a funcionar nos mínimos e não conseguirem enquadrar uma ou duas ausências de férias. Lembremo-nos que a história que nos foi contada era que os mega-hospitais, a concentração de meios eram a resposta para termos uma melhor saúde.

Também acontece algo do mesmo género com os aeroportos, incapazes de acolher os viajantes que ali chegam por não terem pessoal para trabalhar. Lembremo-nos que a privatização dos serviços, a subcontratação e a terceirização dos mesmos foram-nos vendidas como as soluções para termos os melhores serviços aos melhores preços.

Antes, andámos um ano inteiro com carência de professores de norte a sul do país. Lembremo-nos das capas de jornais e dos opinadores que diziam que os professores e as escolas eram demasiado onerosas para o orçamento do país, para além de que os primeiros eram um conjunto de mandriões que apenas trabalhavam vinte e duas horas por semana.

Isto não pode ser entendido como um acaso, são muitos, demasiados, sintomas concordantes numa doença comum: os sucessivos governos, e este em particular, estão a arruinar o estado, estão a destruir os serviços, a dá-los de barato aos privados. São décadas e décadas acumuladas de desinvestimento brutal, de transformação de pessoas essenciais em tarefeiros ao dia, de gestão empresarial que é o mesmo que gestão danosa sem cuidado, sem limpeza, sem ética. Há um plano bem concertado entre muitos dos poderes de facto deste país para acabar com o estado, e suas instituições populares, saído do 25 de abril. E esse plano está a dar os frutos que temos visto e que já víamos antes da pandemia.

A este respeito as reações dos vários meios de informação são bastante elucidativas: não atacam o problema, não apontam as questões fundamentais, têm feito um grande alarido sempre com o sentido de “mais privado” e de “menos estado”, quando o “mais privado” tem sido uma das razões, um dos meios, para estarmos na situação em que estamos. Esta maioria absoluta do PS ainda vai ficar na história deste país. Ela tem o respaldo para conseguir levar a cabo as vontades dos poderes que realmente governam o país e que as massas populares, bem entretidas que andam, vão suportando: um estado cada vez mais incapaz de fazer cumprir uma qualquer noção de igualdade, de solidariedade e de cidadania, governando um país partido entre os muito ricos e os muito pobres. E enquanto os muito ricos ainda mais enriquecem, os muito pobres vão apontando dedos uns aos outros.

publicado às 14:58

A quem é que o estado serve?

A inflação tem, seguramente, diversos efeitos nefastos numa economia, efeitos que conduzem à disrupção de padrões de consumo e de circulação do capital, tornando a economia mais receosa e conservadora e acelerando a sua perigosa tendência natural em capitalismo: a acumulação de riqueza.

Para o estado português, todavia, a inflação traz consigo um potencial inesperado, que o mesmo espreme até que as massas se comecem a contorcer e a retorcer de insuportáveis dores. O país com uma das mais elevadas cargas fiscais da Europa aguenta até ao último segundo para baixar umas décimas de impostos, aproveitando, nos “entretantos”, todo esse imoral excesso de tributação. Depois, o estado ainda se vangloria, na cara do povo proletário, como se lhe estivesse a fazer um grande favor! Prática consolidada, em décadas, com os combustíveis, estende-se agora à generalidade dos produtos, em média, 8% mais caros. Se queremos estabilidade, temo-la no IVA que “resiste”, sólido, determinado, nos 23%.

O povo devia saber onde está a ser aplicado este excesso brutal e, reforço, imoral de tributação. Se assim fosse, algumas coisas tornar-se-iam mais claras. Por exemplo, para que é que o estado serve e a quem é que o estado serve. Não tenhamos ilusões, todavia. Com a segurança social passa-se a mesmíssima coisa. Dada a mortalidade extraordinária que, infelizmente, tem afetado sobretudo reformados e pensionistas, uma pergunta fundamental emerge: a segurança social está rica? E, se não está, para onde está a ir o dinheiro? É que nem a idade da reforma baixa de forma significativa! Voltamos ao princípio: se isto nos fosse explicado, perceberíamos claramente para que é que o estado serve e a quem é que o estado serve. E, então, as coisas poderiam diferentes.

publicado às 11:18

É hora de começar a rezar

Realmente... a Finlândia e a Suécia agora querem aderir à NATO... acho muito bem... e todos nós, como povo, e o nosso adorado presidente, o que nunca se nega a uma selfie, também... todos achamos muito bem...

A Rússia bem pode ter começado esta guerra, mas o ocidente anda empenhado em dar-lhe razão e está a fazer de tudo para que ela, a guerra, não termine. E, pior, muito pior, para que a guerra evolua para o estádio seguinte...

Para quem crê, é hora de começar a rezar... para que os poderes supremos possam pôr algum senso na demência que vai por aqui em baixo. Isto não vai acabar bem.

publicado às 14:23

Viva o livre mercado!

Era exatamente agora, no momento em que as gasolineiras se recusam a baixar o preço do combustível de acordo com a correspondente baixa dos impostos (nem de perto, nem de longe!), na mesma altura em que as mesmas batem todos os recordes de lucros monopolistas e obscenos, era precisamente agora, como dizia, que seria de confrontar a Iniciativa Liberal, em particular, e todos os defensores do livre mercado, em geral, com a ideia peregrina de que “liberalismo funciona e é preciso” que tanto gostam de propalar.

Pena é que durante as campanhas eleitorais nada disto seja noticiado, falado ou debatido e esses “génios”, os quais, lamentavelmente, contaminam as universidades deste país, dispõem de todo o tempo de antena para despejar a sua boçalidade de economia ultrapassada do século XIX sem qualquer tipo de contraditório. Por ora, como é evidente, estão todos caladinhos. Convém. Até os cartazes foram oportunamente retirados! Viva o livre mercado!

publicado às 18:50

O rescaldo possível

Para mim é sempre difícil, penoso, fazer o rescaldo das eleições em Portugal, sejam elas quais forem. Para um revolucionário que vê neste sistema capitalista as correntes que não nos deixam ser livres, viver em plenitude, perseguir os nossos sonhos de um modo sustentável e racional, todas as vitórias são meramente simbólicas, todos os ganhos são escassos e todas as derrotas demasiado dramáticas porque se constituem como oportunidades perdidas, adiamentos do progresso que a humanidade reclama, mesmo que disso não tenha qualquer consciência.

As passadas eleições não trouxeram nada de novo, muito embora a comunicação social se tenha excitado muito com a maioria absoluta do PS e o grande crescimento da extrema-direita neoliberal e fascista. Não considero estes factos verdadeiramente surpreendentes, de facto. Quando pensamos bem na coisa e no modo como foi preparada, vemos que não há muito de surpreendente nisso: o discurso fortemente bipolarizador, a ameaça da extrema-direita, as sondagens com empates técnicos fictícios e, claro, uma esquerda sem um discurso próprio, sem um discurso afirmativo, sem a capacidade ou a vocação para desmascarar as intenções e as práticas políticas do PS — em boa verdade, depois de seis anos de colagem total à governação socialista, como poderia tê-lo feito? Adicione-se uma liderança verdadeiramente incapaz da parte do PSD, um António Costa a acenar com aumentos e distribuições de verbas da forma mais inadmissivelmente anti-ética, e fez-se a calda perfeita para o resultado eleitoral verificado.

Do lado da direita, também não considero os resultados particularmente brilhantes, ao contrário do que a comunicação social reacionária tem procurado veicular. Juntos, Iniciativa Liberal e Chega obtiveram qualquer coisa como 13% de votos, 8% para o Chega e 5% para a IL. Claro que houve um crescimento, mas em si mesmos, são resultados bastante medíocres: 8% para a terceira força política é dos resultados mais fracos de sempre e considerando o quase desaparecimento do CDS estes resultados são ainda mais irrelevantes. Note-se que, há uns anos, Paulo Portas chegou a obter um resultado equivalente a estes 13% sozinho com o CDS. O que se passou foi, com efeito, uma transfiguração da direita, uma mudança de rostos e de plataformas políticas. É manifestamente injustificado, ainda, falar-se num crescimento da direita: a única coisa que aconteceu foi uma substituição de direitas e transferências praticamente diretas de votos.

O que resultou de mais grave nestas eleições é a perceção clara de um enfraquecimento substancial da esquerda que perde votos para o PS e, até, para o Chega. PCP e Bloco estão reduzidos a meros 10% de votos. É grave a transferência de votos operada, porque significa, mais que uma erosão eleitoral, uma erosão ideológica. Há algo de realmente errado quando uma pessoa que vota Partido Comunista passa a votar PS ou — imagine-se! — Chega. Devia ser sobre isto que estes partidos, PCP e Bloco, deviam ponderar com seriedade. Que eleitorado pretendem? Que eleitorado estiveram a construir com os seus discrusos e as suas práticas? Foi isto que conseguiram com seis anos de geringonça.

O que resulta surpreendente nestas eleições, e também nas demais, é que o povo não nos surpreende. As grandes massas, por muito que deem aso, diariamente, à mais contundente crítica relativamente ao sistema político e seus serviçais, demonstram à saciedade a sua aversão completa por qualquer vislumbre de mudança, um comodismo implacável pela situação presente, uma genuína falta de ambição por um futuro melhor, mais próspero, mais honesto e mais justo. A distribuição dos votos é, essencialmente, sempre a mesma. As escolhas são sempre, essencialmente, as mesmas. Como que se isto fosse o melhor que estamos autorizados a ambicionar. Como se isto fosse a meta que queríamos atingir, o paraíso na Terra tal como nos foi prometido. No final das contas, contados e recontados todos os votos, é essa sensação de resignação que fica e que me deixa sempre muito desanimado.

publicado às 16:03

A esquerda e o amor-próprio perdido

A escassos dias da realização das eleições legislativas antecipadas, sinto o país na antecâmara de tempos de incerteza e de desesperança. Depois de seis anos de apoio parlamentar ao governo PS, seis anos onde foi permitido, de facto, a cristalização — através da sua institucionalização e maquilhagem legal — dos retrocessos estruturais operados no tempo da troika na sociedade portuguesa, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português decidiram acabar com a parceria. O PS, em articulação estreita com o Presidente da República, aproveitou a oportunidade para tentar a maioria absoluta ou, pelo menos, enfraquecer a voz reivindicativa — já praticamente inexistente — da esquerda.

Acontece que em vez da situação poder representar uma inversão nesta situação de captura da esquerda política, pelo contrário, a estratégia da esquerda parece continuar a mesma. O que temos assistido é verdadeiramente confrangedor. António Costa a tomar o crédito por medidas que não teria tomado sozinho, a atacar miseravelmente Bloco e PCP, chegando ao cúmulo de lhes exigir pedidos de desculpas! A sério?! Um indivíduo cuja carreira política teria acabado se Jerónimo de Sousa não lhe tivesse estendido a mão quando já chorava a derrota aos pés de Passos Coelho vem agora exigir pedidos de desculpas para voltar a conversar? Isto é sério?! Isto é o cúmulo da indecência!

Mas do lado da esquerda, como dizia, continua a postura da mão estendida ao PS, depois de seis anos de abusos, de falta de honestidade, de medidas não levadas à prática, de acordos não cumpridos, de orçamentos acordados para logo serem rasgados com as cativações mais elevadas na história, a esquerda permanece de mão estendida, a implorar por acordos, à espera, talvez, da descida de Deus à terra desprezando, no processo, os seus valores, os seus princípios, o seu património ideológico.

É por isso que as perspetivas não são animadoras. O povo pode até não gostar de uma pessoa de fraco caráter, afirmação que carece de evidência, mas gosta seguramente menos de um parvo. Há o perigo concreto do país virar à direita o que, politicamente, é sempre grave, mas que na prática, por tudo o que foi dito acima, por tudo o que tem sido, de facto, a governação socialista, não é problema nenhum. A maioria das políticas da geringonça foram aprovadas à direita e não à esquerda e, por exemplo, o código laboral conseguiu ficar pior com a geringonça. Por isso, moderemos os dramatismos.

Além disso, nem tudo é negativo. Esta campanha eleitoral assistiu ao emergir de uma força política com juventude e sangue, com energia e idealismo revolucionário. O MAS, Movimento de Alternativa Socialista, surpreendeu-me pelo seu discurso, assumindo-se como anti-sistema, anti-capitalista, com ênfase nos jovens empurrados para a precariedade e para a emigração, na luta de massas e nas ruas. Corporizado na figura de Renata Cambra, afirma a necessidade de constituição de uma alternativa de esquerda sem o PS, algo que é rejeitado por Bloco e PCP: a geringonça acabou — e ainda bem que acabou —, mas Bloco e PCP querem manter com toda a força a sua relação de submissão para com o PS. Tenho esperança que o MAS possa crescer e conseguir representação parlamentar. Mesmo que não consiga, fiquei feliz por descobrir o discurso que procurava no MAS. O MAS representa os valores que a esquerda parlamentar esqueceu nestes anos. Representa o amor-próprio que a esquerda perdeu e não consegue encontrar.

publicado às 11:44

A construção de uma bipolaridade à direita

Qualquer pessoa minimamente razoável e perspicaz concordará que quatro anos de geringonça formal mais dois de geringonça informal traduziram-se mais numa “direitização” de PCP e Bloco do que de uma qualquer “esquerdização” do PS. A troco de um conjunto mínimo de recuperações de direitos e de salários, sobretudo no setor público e relativamente aos pensionistas, o PS foi autorizado a prosseguir na íntegra o projeto liberal iniciado pelo passismo: serviços públicos decadentes, elevadíssimos impostos sobre quem trabalha e consome para sustentar privatizações, parcerias público-privadas, bancos, empresas falidas, buracos financeiros e as brilhantes e eficientíssimas gestões privadas a que já estamos habituados no nosso país.

O passismo criou, de facto, raízes fortes: desenhou um plano pormenorizado para entregar definitivamente o país, os seus valores, a sua autonomia, a sua soberania, formou quadros, disseminou-os pelas instituições e pela comunicação social. E o PS fez o que não se faz: roubou o plano, alterou os nomes, mudou o texto, mas plagiou-o descaradamente e tomou-o como seu. É neste quadro que podemos compreender, ainda que dando de barato a inépcia de Rui Rio enquanto líder do PSD, o posicionamento dos jornais e dos canais de informação, as críticas constantes ao PSD de Rio, a ênfase e o mediatismo concedido a André Ventura e ao Chega muito acima do que seria expectável a quem apenas teve 1,29% dos votos. Chega e Iniciativa Liberal são, por assim dizer, as imanências de um passismo derrotado, mas não vencido.

Um PS a romper o apelidado “governo de esquerda” pela direita e a promoção com toda a força mediática de uma direita liberal e fascizante antecipam um quadro de bipolarização cada vez mais posicionado à direita, o que, associado a uma esquerda em acentuada perda, que não se consegue afirmar como esquerda que é, estando perfeitamente entregue ao redescoberto papel de muleta governativa, não augura um futuro próximo risonho para o país. Preparemo-nos, pois, para o que aí vem.

publicado às 11:08

Uma decisão com potencial transformador

A decisão de Carlos Moedas de tornar gratuita a utilização de transportes públicos em Lisboa tem passado mais ou menos despercebida num país preocupado em fazer contagens covid, mas tem o potencial de se revelar um ponto de mudança no panorama político nacional.

Com uma esquerda resignada a pequenos ganhos, pequenas alterações, uma esquerda que definitivamente esqueceu a revolução, a utopia, a transformação da sociedade, a adoção pelo centro-direita de uma medida como esta só pode abalar a balança do poder.

A ser posta em prática a gratuitidade generalizada dos transportes públicos em Lisboa, Moedas e o PSD fazem o que nenhum executivo camarário fez até hoje, mostram que este tipo de medidas não é pertença de nenhum universo ideológico, que é apenas uma ferramenta económica para melhor gerir a sociedade, seja à esquerda, seja à direita. Com isto, esvaziam a esquerda de boa parte do seu argumentário e enterram de vez os fantasmas da direita ultra-liberal Passos-Portas.

Não sei o que se vai passar a 30 deste mês — as próximas eleições estão já aí ao virar da esquina —, mas é precisamente uma medida como esta, uma medida de indiscutível alcance sócio-económico, que pode virar o eleitorado, que pode transformar as imagens públicas dos políticos e dos partidos. Se isso vier a suceder ninguém se lembrará de uma política local como esta, como é evidente. Todavia, são sementes como esta que fazem germinar, na grande Lisboa e no resto do país por contágio e por contraste, um sentimento íntimo e genuíno de confiança na mudança.

E a esquerda, PCP e BE, não precisa ficar amuada ou desiludida. Foi a esquerda que decidiu entrar no jogo da política burguesa, no jogo dos presentes eleitorais, das ofertas, das pequenas medidas, dos pequenos aumentos, dos pequenos direitos. Esse é um jogo que pode ser jogado por todas as partes. É o jogo da hipocrisia e do oportunismo. O caminho dos ideais, dos princípios, da coerência e, portanto, da revolução foi abandonado. Esses partidos estão, por isso, de parabéns: hoje fazem parte desse sistema — fazem parte da democracia burguesa — e por ele serão devorados.

publicado às 09:54

A regionalização que se prepara

A raiz de toda a propaganda está no processo de representação, na capacidade de sintetizar a coisa através de um símbolo. A propaganda dedica-se a criar universos imaginários suscitados por uma ideia e com a capacidade de a representar, de lhe dar um corpo, uma manifestação em coisa palpável, de tal modo que a ideia passa a ser a representação que se faz dela.

Neste sentido, é sempre avisado questionar os conceitos em discussão, mormente antes da discussão ter lugar. De que é que estamos a falar, exatamente? A que nos referimos? Isto vale para os conceitos mais abstratos como liberdade ou democracia, mas também para outros menos abstratos como igualdade e ainda outros que parecem ser muito concretos e bem definidos como regionalização.

O debate da regionalização que ocupou algum do espaço mediático nos anos noventa referia-se a um instrumento de descentralização do investimento público, o qual, já na altura, encontrava-se perfeitamente concentrado na região de Lisboa em evidente prejuízo para as demais regiões. A regionalização apresentava-se, assim, como uma forma de melhor distribuir verbas e de aplicá-las regionalmente de um modo mais participativo e democrático. Essa regionalização seria importante, mas não necessária para se atingirem esses fins que eram apresentados à vista.

Devemos entender bem esta diferença. A política de desinvestimento e de abandono do interior, das zonas rurais, em favor das zonas costeiras e das grandes metrópoles, particularmente a capital, em redor da qual se foi acumulando uma maioria esmagadora e insustentável de população, tem sido uma política sistemática, bem dirigida e racionalmente orquestrada pelos sucessivos governos. Não se tratou de nenhuma inevitabilidade. Foram medidas concretas, aceleradas no novo milénio, penduradas nas sucessivas crises capitalistas como justificativas oportunistas. Devemos ter consciência disto antes de prosseguirmos.

Avancemos, pois, no desenrolar da história. Neste fim-de-semana, António Costa, no seu eticamente reprovável duplo papel de primeiro-ministro e candidato ao cargo, promete um referendo a propósito da regionalização para 2024 na sequência do processo de descentralização levado a cabo pelo PS para as autarquias. Este é, portanto, um momento importante que nos deve levar a parar e a refletir, a questionar e reconstruir os nossos imaginários sobre o tema.

António Costa fala na regionalização como uma consequência de um processo de descentralização bem feito, processo esse que, sabemo-lo bem, nada mais tem sido do que um processo de desresponsabilização do estado, de pulverização das suas valências, de precarização das condições de trabalho dos servidores públicos, de diminuição das verbas alocadas para as funções essenciais do nosso estado e de decadência dos serviços públicos em geral. Correndo o risco de cometer a maior das injustiças, as evidências apontam para uma regionalização que se prepara em moldes distintos da regionalização que se pretendia nos anos noventa: um mega processo generalizado e legalmente instituído que podemos descrever como a “subcontratação” dos serviços essenciais do estado pelas suas várias sucursais (regiões) que, depois, farão a gestão desses serviços como bem entenderem. Compreenderá este processo, como é natural, um subfinanciamento crónico, estruturalmente instituído, democraticamente protegido, a salvo de escrutínio popular, mais ou menos mitigado pela identificação da cor política da região com a cor política do governo central.

O povo queixar-se-á, claro, mas será um queixume mal direcionado, dirigido aos que administrarão escassas verbas. As regiões esquecidas hoje, continuarão votadas à decadência com a regionalização, porque para que tal não acontecesse, o estado central teria que retirar verbas à grande Lisboa para as dedicar às regiões com cento e poucos habitantes, mas isso poderia fazê-lo agora, nada o impede, não precisava nem de regiões, nem de mais governantes, secretários ou burocracia. Mas as prioridades do estado central têm sido outras, a saber: encerramento de escolas, hospitais, correios, serviços públicos e até mesmo freguesias. Portanto, nada disto parece ser muito coerente, talvez porque as intenções com a regionalização não coincidam com a propaganda que a acompanha.

Na verdade, o erro é nosso em esperar de um governo burguês qualquer política que não seja em essência burguesa, isto é, que não vise a acumulação final do capital e a concentração do poder económico nas mãos da burguesia que se vai divertindo enquanto o povo, por sua vez, se entretém a discutir as migalhas que caem ao chão.

publicado às 10:05

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