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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Não se pode ser de esquerda apenas em parte

Por mais do que uma vez, tenho escrito que não se pode ser de esquerda apenas em parte, que a esquerda não é algo que se possa materializar numa sociedade em porções, nem que seja capaz de cobrir por camadas as injustiças, uma por uma. Quem interpreta a esquerda deste modo, o que está a fazer, com efeito, é a criar novas injustiças, substituindo, quanto muito, as existentes. Quando o paradigma liberal, capitalista, permanece intacto e acorremos a cada injustiça com uma panaceia que nos parece apropriada, apenas semeamos novas injustiças que as gerações seguintes tratarão de colher.

 

Veja-se, a título de exemplo, o caso das pensões mais baixas que, ao que parece, verão um aumento concreto ao longo do próximo ano, por ação da esquerda parlamentar. É evidente que as pensões mais baixas são objetivamente insuficientes para uma sobrevivência minimamente decente seja para quem for. É evidente. Por ser evidente, deixemos a evidência de lado. Importa refletir sobre a razão pela qual tais pensões são as mais baixas e a razão é óbvia: são pensões atribuídas a quem durante a vida toda pouco ou nada descontou para o sistema. Ora, quando pensamos no assunto deste modo, a evidência anterior, não perdendo por completo a sua natureza, começa a abandonar alguma da sua robustez.

 

Não é muito justo que o Estado acorra em auxílio de quem viveu uma vida inteira à margem do sistema. Estou a generalizar, claro. É certo que, muitas vezes, não se trata de uma opção voluntária. Outras tantas vezes, todavia, é.

 

É aqui que se separa o trigo do joio. É aqui que se vê o que é esquerda do que é mera alquimia política.

 

Se entendemos que o estado deve ser assistencialista e deve acudir a todos os casos e garantir um mínimo de rendimento a todos, pois então o sistema de redistribuição da riqueza deve ser equitativo, justo, ponderado, e globalmente transversal. Devem ser claras as transferências de verbas das classes economicamente superiores para os estratos mais baixos.

 

Se assim não for, isto é, se formalmente a sociedade permanecer esboçada segundo a arte liberal, se se continuar a permitir a concentração de riqueza, o estabelecimento de monopólios económicos e se se continuar a proteger a burguesia, a classe dominante, então quem acaba por pagar todos estes aumentos são sempre os mesmos explorados do costume, aqueles que trabalham de dia e de noite, aos sábados e feriados, só porque foi essa a educação que lhe deram e porque veem no trabalho uma especial virtude. Porque não conseguiriam viver de uma outra forma, de mão estendida, por muito explorados que sejam.

 

Com a intenção de desfazer injustiças, a esquerda agudiza injustiças já existentes ou cria outras totalmente novas. Isto não é esquerda, é outro tipo de exploração dos trabalhadores.

 

Porque não existe esquerda aos bocados.

 

Porque não se pode ser de esquerda apenas em parte.

publicado às 22:44

Esquerda, desculpa

Esquerda, desculpa, mas este orçamento não me satisfaz.

 

Esquerda, desculpa, mas o que o governo tem feito também não me satisfaz.

 

Esquerda, desculpa, mas o que vocês estão a apoiar parlamentarmente é, essencialmente, o mesmo que anteriormente repudiavam.

 

Esquerda, desculpa, mas apoiar medidas diferenciadoras de funcionários públicos dos demais trabalhadores, não é de esquerda.

 

Esquerda, desculpa, mas ficar contente com aumentar pensões e reformas não é suficiente.

 

Não é suficiente.

 

Esquerda, desculpa, mas os precários continuam exatamente na mesma. Continuam sem direitos, sem férias, sem subsídios, sem garantias e cada vez mais a trabalhar mais por menos.

 

Esquerda, desculpa, mas não te reconheço. Este governo é um embaraço.

 

Esquerda, desculpa. Reconheço que a força das circunstâncias te empurrou para esta situação, mas não te podes deixar travestir nem pela força das circunstâncias, nem por coisa nenhuma. Esquerda é esquerda, direita é direita. E o que tu estás a ser não é esquerda, é uma espécie de direita aguada, atenuada, mas não te equivoques! O que estás a ser é direita.

 

Esquerda, desculpa, mas não partilho da tua felicidade. Antevejo, pelo contrário, tempestades no horizonte, brotadas de cada indefinição, de cada cedência que vais plantando para dares seguimento a este governo de faz-de-conta, a este frete, a este mal menor que até me dói nos lábios quando o pronuncio. Essas tempestades virão com as próximas eleições.

 

Esquerda, desculpa, estás a perder de vista quem devias apoiar que é o povo que trabalha, que é o povo que, mesmo trabalhando, empobrece. E a troco de quê? A troco de medidas pueris, inconsistentes, insustentáveis, de esmolas que dão a pequenos grupos sociais? E cada uma dessas esmolas é suportada por quem? Queres que te diga? É pelo tal povo que trabalha. É pelo povo que devias estar a proteger.

 

Esquerda, desculpa, mas não se pode ser de esquerda apenas em parte: ou se é, ou se não é. Não há meio termo.

 

Esquerda, desculpa, hoje estou sentido contigo. Esperava mais. Esperava reversões a sério, no código de trabalho, na lei, na inspeção, nos contratos de trabalho, nos recibos-verdes, esperava algo que fosse realmente estrutural.

 

Esquerda, desculpa, amanhã falamos. Hoje, não posso olhar mais para a tua cara e para o que te tornaste.

publicado às 20:22

Antecâmara para uma cambalhota na história

Os tempos políticos que correm são de um grande surrealismo e, passado o tempo conveniente para o podermos apreciar com uma certa distância, a sua natureza surreal, perplexa, é já indisfarçável, quer dizer, injustificável.

 

A direita teve razão quando se indignou com a solução parlamentar oferecida pela esquerda à governação PS. A direita, dentro e fora do PS, nunca pôde conceber tal solução e, portanto, nunca a conseguiu compreender e interiorizar, razão pela qual não lhe consegue oferecer uma resposta minimamente inteligível enquanto oposição. O máximo que Assunção Cristas e Passos Coelho conseguem é ensaiar uma débil posição de contraponto ao governo, criticando tudo o que acontece, com muito dramatismo, mas sem qualquer decalque com o real. E, depois, a memória ainda está bem fresca no povo. Ouvi-los criticar aumentos de impostos descredibiliza-os de uma forma tão definitiva que se torna num embaraço lamentável.

 

Não obstante, a direita tinha razão para se sentir como se sentiu. As razões são históricas e de prática política. O PS, tendo tido oportunidade para o fazer, sempre escolheu aliar-se à direita para formar soluções governativas de... direita. É factual. A exceção foi este governo.

 

Mas a situação é surreal não só pela história e pela coerência política, mas também pela prática concreta atual. Vejamos se me consigo explicar.

 

Olhamos para a proposta de orçamento de estado para 2017 e o que vemos? Melhor, o que vemos de esquerda? Concretamente, nada!

 

O aumento das pensões e o fim da sobretaxa são medidas que qualquer governo com uma certa razoabilidade e sentido de justiça poderiam tomar. Embora positiva, a reorganização fiscal operada, que coleta em potência exatamente os mesmos, também não. No que é o universo da esquerda, no que é a regulamentação do mercado de trabalho, a segurança dos trabalhadores, a distribuição da riqueza do país pelos portugueses... há apenas uma ténue medida de taxação aos imóveis de mais de seiscentos mil euros. É isso. Acabou. Tudo o resto, todo o lastro de desregulamentação, de destruição, do país nos anos de austeridade mantém-se perfeitamente intocado.

 

Honestamente, de que estamos nós concretamente a falar? É realmente surreal vermos a direita a criticar este governo quando, em bom rigor, o devia aplaudir de pé por ter conseguido o mais baixo défice da história democrática do país e, por seu turno, vermos a esquerda a apoiar e a constantemente argumentar desculpas para proteger este executivo, quando o devia estar a criticar ferozmente por, essencialmente, manter-se fiel à austeridade.

 

É evidente que a coisa política chegou a um ponto tão dramático, de clivagens tão profundas, em que a direita se extremou tão radicalmente, que obrigou a esquerda a aceitar um mal menor chamado governo PS. Entendo isso. Não deixo, contudo, de ter consciência dos conceitos em jogo. Esses não se alteraram. O vermelho não deixou de ser vermelho, nem o azul passou a ser cor-de-rosa. E a esquerda não está a apoiar um governo de esquerda. A esquerda está a apoiar um governo de direita e devia dizê-lo mais claramente e assumir um sentimento de alguma vergonha por isso mesmo. Ao meter-se em bicos de pés e ao não conseguir disfarçar um certo orgulho em medidas absolutamente frívolas como um aumento de dez euros nas pensões ou um desconto nos passes escolares dos estudantes do superior, está a colar-se a esta governação e a cada uma das suas consequências, boas ou más.

 

Vivem-se tempos políticos surreais, de facto. Veremos se todo este processo não conduzirá a transformações dramáticas dentro e fora destes partidos. Veremos se estes tempos não servirão como antecâmara para uma cambalhota na história.

publicado às 08:57

Rebanho

A discussão em torno do orçamento de estado de 2016 tem gerado uma fúria popular bem audível para quem quer que se movimente por entre as povoações do país. Essa fúria é motivada essencialmente por uma deceção visceral a propósito da inverosímil e inacreditável união parlamentar das esquerdas e que encontrou bode expiatório na reposição de salários e horários de trabalho na função pública.

 

É importante assinalar que esta ira provem do mesmo lugar de onde medraram quer a complacência quer a aceitação quando estes mesmos salários foram cortados e quando os respetivos horários foram incrementados. É decisivo contemplar este facto para podermos afirmar com propriedade científica que o povo português não é mais do que um rebanho de invejosos que procura no mal alheio o seu próprio bem.

http://www.cartoonmovement.com/depot/cartoons/2011/12/01/totalitarian_election__sergei_tunin.jpeg

 

Com isto não desprezo toda a crítica ao orçamento e até mesmo a um certo entendimento legítimo de tratamento desigual na sociedade. Não obstante, importa relevar este sentimento popular endémico, porque o Homem evoluído, o Homem do futuro, terá que forçosamente nutrir entendimentos diametralmente opostos, no sentido de poder vir a adotar comportamentos distintos na construção de uma sociedade que seja mais justa em substância.

 

O português médio revolta-se com o colega de trabalho, ao mesmo tempo que bajula e endeusa o seu patrão. O português médio não faz uma greve nem mexe uma palha para melhorar a sua condição, mas, simultaneamente, corre para a janela do seu apartamento para apelidar de preguiçoso quem o faz e se manifesta na rua. O português médio revolta-se atrás das cortinas contra o carro novo do vizinho e rebola de felicidade se este aparece à noite com o seu carro espatifado. O português médio não ambiciona alcançar um nível superior: antes ambiciona o rebaixamento do seu vizinho para o seu próprio nível.

publicado às 11:45

O predicado do OE 2016

O orçamento de estado de 2016 é digno, à partida, de um predicado que escapou a todos os orçamentos de estado apresentados nos últimos quatro anos: respeita a Constituição da República.

 

Poder-se-á argumentar que é pouco. O facto, todavia, atesta bem o estado a que a República chegou.

 

https://fotos.web.sapo.io/i/oc504086c/6517676_UTQgc.jpeg

 

publicado às 10:09

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