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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Reflexões sobre o aumento do salário mínimo

Suponhamos que, amanhã mesmo, o valor do salário mínimo em Portugal passa a ser de 850 euros, substituindo os atuais 665 euros, conforme a proposta mais ambiciosa — a da CGTP — de todas que estão em cima da mesa. Para se poder sobreviver neste país, particularmente nas metrópoles, 850 euros é um valor claramente insuficiente pois mal chega para pagar uma renda de casa. Devemos ter isto em mente para qualquer discussão sobre o assunto: 850 euros de salário mínimo não permite uma vida sem recurso a habitação social e a demais caridade estatal ou de terceiros.

Dito isto, coloquemo-nos nessa posição de considerar a situação hipotética de um aumento — que é óbvio que não se realizará — do valor do salário mínimo para 850 euros. Ou até, para este efeito, de qualquer outro valor. O que aconteceria na prática? Qual o efeito real sobre a vida dos trabalhadores que dele usufruem? E sobre todos os outros?

No dia seguinte ao anúncio de tal aumento, a inflação dispararia acompanhando esse incremento nos rendimentos. Os preços dos bens e serviços aumentariam transversalmente, quer aqueles em relação direta com mão de obra barata, que aumentariam para suportar o aumento dos salários que teriam que pagar, quer os outros, por um mero processo de simpatia económica, isto é, simplesmente para cavalgar a onda desse aumento e captar algum do maior capital circulante. É a lógica deste mercado predatório. Repare-se que isto não se trata de um mero exercício especulativo: foi exatamente isto que sucedeu após o último aumento do salário mínimo.

Todos os preços aumentariam genericamente, o que se traduziria, por si só, numa ineficácia do aumento do salário mínimo no seu propósito de dotar as famílias, que dele usufruem, de um maior rendimento disponível. Sem qualquer tipo de controlo da economia, qualquer aumento do salário mínimo é instantaneamente absorvido, mantendo-se exatamente as mesmas margens de lucro do patronato, assim como as mesmíssimas proporções de distribuição do capital pela classe trabalhadora. Isto, claro, na melhor das hipóteses. O senso comum sabe bem que os aumentos dos preços tendem a ser sempre mais generosos e mais “arredondados” do que os aumentos salariais.

No imediato, a receita fiscal que o estado arrecadaria seria considerável. Falamos de impostos diretamente relacionados com o trabalho, mas também com o consumo. Seria mais que suficiente para fazer face às responsabilidades estatais referentes ao aumento da despesa relacionadas com o pagamento desse mesmo aumento do salário mínimo que afeta muitos dos seus funcionários públicos. Sobraria ainda muito dinheiro dessa arrecadação de receita. Todavia, o esquema do país manter-se-ia, na melhor das hipóteses, idêntico. Lembram-se? A economia ajusta-se e adapta-se. Convém não esquecer isso. A despesa geral do estado, enquanto macro-consumidor que também é, também aumentaria, já para não falar que, a breve trecho, o estado teria que aumentar tudo o que diz respeito a subsídios e apoios sociais, os quais, obviamente, não podem ficar desenquadrados da realidade e são, como não poderia deixar de ser, indexados ao valor do salário mínimo nacional.

É evidente que há efeitos multiplicativos, e que são positivos, relacionados com uma economia a funcionar com uma maior quantidade de capital circulante e esses efeitos não podem ser menosprezados. Porém, muita da propaganda em redor do tema do aumento do salário mínimo resulta frouxa e inconsequente na prática, quer a da direita, assolada de um pavor absolutamente infundado, quer a da esquerda, tomada de uma esperança vã em torno de uma medida da qual faz bandeira de imparável progresso.

O raciocínio da esquerda é que um aumento do salário mínimo terá forçosamente efeitos contaminadores de todo o panorama salarial no país, impelindo aumentos proporcionais aos salários intermédios. Tal efeito, todavia, nem sequer se verifica na função pública, a qual desespera por revisões nas tabelas salariais que o governo permanentemente ignora. No que diz respeito ao setor privado, então, a questão ainda é mais negra, com os salários intermédios perfeitamente paralisados, sem qualquer tipo de poder reivindicativo e cada vez mais próximos do salário mínimo.

Numa qualquer escola privada, por exemplo, vemos uma equiparação cada vez mais evidente entre o salário de um professor, o de um funcionário administrativo e o de um funcionário de limpeza, que, não obstante representarem funções com níveis de qualificação muito diferentes, são cada vez mais indiferenciados. De referir também o facto de que muito do trabalho atual, privado mas também público, ser pago a recibos verdes os quais, na prática, não veem qualquer tipo aumento.

Por esta altura, o meu leitor poderá estar a ficar confuso. Peço-lhe, por isso, que releia o meu primeiro parágrafo: o aumento dos rendimentos dos trabalhadores é absolutamente fundamental — não tenha dúvidas a este respeito. O meu ponto é outro: no quadro atual, com a economia que temos, com o governo que temos, perfeitamente serventuário dos lucros dos grandes capitalistas, qualquer aumento do salário mínimo é incapaz de cumprir os objetivos que se pretende e poderá mesmo funcionar ao contrário, provocando inflação, esbatendo diferenças salariais entre trabalhadores e, desse modo, na verdade, nivelando a redistribuição da riqueza por via salarial por baixo. No fim das contas, até o consumo interno, que se pretendia potenciar, poderá ficar mais estrangulado logo à partida nos gastos com os bens de primeira necessidade.

publicado às 10:59

O estado da academia

Tenho acompanhado com interesse e curiosidade a contenda que tem oposto Raquel Varela, figura pública, interveniente no espaço de opinião e investigadora destacada na área de História, ao jornal Público. É surpreendente constatar que, aquilo que aparentemente começou como um lamentável ataque pessoal e difamatório de um meio de comunicação social a uma personalidade que ousou criticá-lo, se tornou num caso ético-moral no que diz respeito à investigação científica e ao estado geral da academia no país e, até, no mundo.

Para se defender do ataque que o seu impressionante currículo foi alvo, a investigadora e professora universitária limitou-se a apresentá-lo e a descrevê-lo no contexto das boas práticas às quais toda a academia adere. A defesa cabal, todavia, teve o condão de destapar a face de como é feita investigação nos dias de hoje, como se sobe na carreira universitária, como se constroem currículos.

Em cinco anos, a investigadora regozija-se nas suas redes sociais com o facto de ter publicado 41 artigos, 23 livros e supervisionado 25 estudantes de pós-graduação, numa pequena parcela de um currículo verdadeiramente extraordinário, pelo menos do ponto de vista quantitativo. Mas fiquemo-nos por estes cinco singelos anos que terão alegadamente servido de base para o concurso que esteve na origem do putativo processo de difamação de que está a ser alvo: são, em média, mais de 8 artigos por ano, mais de 4 livros por ano e exatamente 5 orientações por ano! A defesa cabal de Raquel Varela esbarra numa inexorável parede chamada de realidade: pensar que uma pessoa pode produzir este tipo de trabalho para além da sua atividade regular enquanto docente universitária, já para não falar das inúmeras e regulares participações em espaço público, é algo de absolutamente surreal. Apetece dizer que, em cinco anos, seria difícil sequer ler completamente a obra produzida, quanto mais pesquisar, estudar, escrever e publicar — note-se, a este respeito, que a burocracia envolvida na publicação de um artigo numa revista científica com arbitragem é coisa para demorar, por si só, anos.

Este texto de opinião, sublinho-o, não tem em Raquel Varela nenhum alvo: apenas utiliza o seu caso como pretexto para refletir sobre o modo como funciona a investigação científica em Portugal e no mundo. Raquel Varela joga o jogo conforme as regras do mesmo. Acredito que não tenha feito rigorosamente nada de errado. Nada a distingue da generalidade dos investigadores. É o sistema de publicação colaborativa massiva, no qual participam dezenas de investigadores que depois se perfilam como coautores dos trabalhos, mesmo que a sua colaboração seja eventualmente residual. É a desmultiplicação de uma mesma ideia pelo número maior possível de artigos, nos mais variados formatos. O que conta são os números e os números finais justificam os meios.

A academia está convertida nesta selva de publicações, nesta escrita à pressão estilo copy-paste, nesta exigência por resultados numéricos para se poder apresentar em powerpoints bonitos para justificar dotações estatais, bolsas de investigação e prestígio académico. O conteúdo da investigação, a qualidade da mesma resultam desfocados no meio da profusão de publicações. Quem é que realmente se interessa pelo sumo da coisa? Quem é que se dá ao trabalho de ler o que está lá escrito? Ninguém: o que interessa é o número de publicações, o nome e o prestígio das revistas.

Tudo isto funciona muito bem se ninguém começar a mexer no sistema. Se se começar a mexer, então tudo é passível de ser questionado. É tudo legal. Se calhar, até pode ser considerado ético, tão transformadas que estão as instituições de ensino superior. De moral é que tem muito pouco.

Por toda a parte, o polvo capitalista estende os seus tentáculos, infetando, como um vírus, cada divisão da ação humana. Mesmo as mais nobres caem corrompidas, trocam a qualidade pela quantidade, sucumbem a números sem significado e sem alma, sujeitam-se aos interesses de quem pode e de quem manda. O estado pandémico que atravessamos tem-se constituído como um boa plataforma para se entender o quão baixo chegou a credibilidade da academia, perfeitamente perdida em estudos contraditórios e em encruzilhadas de interesses.

Há certos domínios que deveriam estar imunes ao poder e à tentação do capital. O problema é que o capitalismo é coisa que não se pode circunscrever, que cresce e que se desenvolve sem controlo e que, quando damos conta, já tudo tomou sob a sua influência. Isto é algo que a esquerda nova, social democrata, a das agências de supervisão e de controlo, a dos escalões e das taxas devia prestar mais atenção. É impossível controlar o monstro.

publicado às 15:01

As migalhas que sustentam o papão da direita

Mais uma negociação de um orçamento de estado e é doloroso o renovar do processo, como ferida que se reabre sem nunca chegar a sarar. Prossegue a discussão em torno de migalhas para aqui e para ali, tendo como pano de fundo um quadro de devastação do país, da sua economia, do seu aparelho produtivo, dos seus serviços e obrigações públicas para com os seus cidadãos. A situação calamitosa no hospital de Setúbal fala ensurdecedoramente por si. E o governo nem sequer abana. Não há escândalo que o faça abanar. A situação é distópica.

A apresentação de uma proposta esta semana por parte do PS com vista ao esvaziamento do poder das ordens profissionais do país não deixa de ser um toque de sofisticada ironia sobre este mesmo assunto. Ao mesmo tempo que discute com a esquerda a aprovação do orçamento para o próximo ano, retira do baú dos tempos idos da troika uma medida que estava para lá prevista mas esquecida. É irónico, porque este governo, com o apoio da esquerda, levou a cabo o essencial das medidas dessa ordem neoliberal, não obstante a oposição verbal simultânea.

Do próximo orçamento de estado podemos, pois, esperar mais do mesmo: estabilidade no processo de liberalização do país, estabilidade na precariedade laboral, estabilidade na concentração de riqueza e nas transferências de riqueza para o estrangeiro, estabilidade na sustentação do estado pela classe trabalhadora, estabilidade na evasão fiscal dos poderosos, estabilidade na degradação dos serviços públicos, cuja normalidade é funcionar abaixo dos níveis de razoabilidade humana, e migalhas, migalhas de migalhas provindas de uma qualquer décima percentual do crescimento económico que se prevê após a retração pandémica.

O apoio da esquerda a este governo resultou nisto e, em boa verdade, é escusado prosseguir em grandes reflexões filosóficas sobre os porquês da sua situação atual de preocupante esvaziamento político. É sobre isto, e nada mais do que isto, que o seu papel deve ser avaliado. É claro que poderão sempre argumentar com a alternativa e podem escolher viver, como aliás tem acontecido, atormentados com a possibilidade da direita voltar ao poder. O quadro atual, todavia, não nos pode deixar muito assustados com essa ideia, porque torna difícil imaginar o que é que a direita poderia fazer mais do que este governo tem feito: não sobram muito mais empresas para desmantelar e entregar ao capital transnacional; a generalidade dos serviços públicos está num estado tal que o passo seguinte é fechar e entregar as chaves a privados; a promiscuidade de dinheiros com a banca e empresas várias, já para não falar em offshores, não pode, em bom rigor, ser maior do que a que é.

Sobram as migalhas. É dessas migalhas com que se alimenta o papão da direita e se disfarça que esse papão aí está, a governar o país sob disfarce, nunca tendo abandonado esse lugar. Precisamente a este propósito, termino esta breve reflexão com uma citação pertinente:

 

Nunca se deve deixar prosseguir uma crise para escapar a uma guerra, mesmo porque dela não se foge mas apenas se adia para desvantagem própria.

— Nicolau Maquiavel, O Príncipe.

publicado às 10:37

Colhemos hoje o que plantámos ontem

Foi interessante acompanhar as ondas de choque produzidas pelo comentário semanal de Pacheco Pereira, a propósito daquela convenção protofascista organizada na semana anterior e ironicamente designada por MEL. Cada vez mais reconheço na nossa sociedade um status quo permanente de «o rei vai nu», mas com uma diferença importante para com a história do cancioneiro popular. É que, quando alguém tem a “indelicadeza” de erguer o dedo em riste e chamar a atenção sobre o óbvio, em vez de fazer com que os restantes se desinibam e reconheçam-no também, gera-se a maior e a mais violenta das discussões sociais. Neste caso, foi Pacheco Pereira que apontou o dedo aos simpatizantes, mais ou menos descarados, do fascismo e, dizem eles, dos seus méritos.

 

Há uma tecla em que Pacheco Pereira tem insistido e que tem muita razão. Os tempos da troika criaram e solidificaram uma massa reacionária de extrema-direita muito ativa nos media e nas redes sociais. Ele chama-lhes think tanks, embora a palavra think seja em si mesma demasiado abonatória para aquilo que é, de facto, feito. Trata-se, no fundo, de um conjunto de influenciadores digitais, especificamente dedicados à política, que exercem a sua atividade em todos os domínios da esfera comunicacional como se de uma espécie de bullying se tratasse. Estão nos jornais, na opinião publicada, nos blogs, nas redes sociais e, virtualmente, em todas as caixas de comentário digitais. Estão lá e são sempre os primeiros a chegar. Têm, inclusive, os seus próprios jornais, rádios e canais digitais, para além de terem lugar reservado nos principais canais de televisão.

 

Quando Pacheco Pereira escreveu o óbvio, imediatamente, claro está, surgiram respostas prontas, como se estivessem já preparadas de véspera, escritas pela mão de gente mais ou menos desconhecida, mas, surpreendentemente, ou não, falando do alto da academia, com posições em prestigiadas universidades nacionais ou internacionais. Este é o ponto que considero preocupante. Não é que o acesso à academia devesse ser condicionado às opiniões políticas individuais: nada disso. Trata-se apenas da constatação de um facto empírico: as faculdades parecem, mais e mais, estar inundadas de pessoas com opiniões muito à direita, ultraliberais e reacionárias. Quando no passado se passava um pouco o contrário, com a esquerda a deter alguma preponderância nas universidades, hoje as coisas parecem viradas radicalmente do avesso.

 

Podemos pensar que tudo isto é obra do acaso, mas não poderíamos estar mais equivocados. Retorno ao título deste texto: colhemos hoje o que temos andado a plantar ao longo dos anos, com o favorecimento sustentado de quadros mediante o seu enquadramento ideológico; a contratação de assistentes convidados em detrimento de pessoal de carreira que, longe de ser uma medida simplesmente economicista, também é uma medida política, é o privilegiar de uma escolha discricionária e arbitrária de quadros superiores que, depois, acabam por se eternizar nesses lugares; já para não falar do processo obscuro que se tornou a atribuição de fundos a centros de investigação e de bolsas de estudo de investigação; ou da disseminação, como cogumelos, das faculdades privadas para dar notoriedade e emprego a amigos de partido, hoje modernamente chamadas de business schools; e que, tudo junto, tem produzido o que temos hoje, uma academia abundantemente composta por uma mediocridade intelectual assustadora, especializada, sim, mas que ocupa os lugares não por mérito, essa palavra que, ironicamente, lhes é tão cara, mas sobretudo pelas insígnias inscritas que exibe no respetivo cartão de militante.

 

É confrangedor, pois, ver todo este espetáculo na praça pública, este debate medíocre, sem argumentos que não os constantes ad hominem: de um dia para o outro acordámos para um mundo em que as discussões de café passaram para a opinião pública. Só que não foi de um dia para o outro, estamos a colher o que plantámos ontem. O mais grave, porém, são as outras consequências, a jusante, para a sociedade: a desconfiança na ciência, um relativismo absoluto, a perda de referências morais, a descredibilização da academia. Mas isso, já são outras conversas.

publicado às 09:52

Breves de maio de 2021

1. Está frio, está um maio que parece inverno. As andorinhas que nidificam sob a proteção do telhado da minha casa parecem arrependidas por não terem adiado a viagem deste ano. Chove copiosamente. Não sei porquê, mas desconfio que não seja o bastante para afastar o alarme permanente de seca no nosso querido país.

 

2. Entre ontem e hoje, nos intervalos dos aguaceiros, tive a sorte generosa de observar três arco-íris. O de hoje de manhã era uma semicircunferência colorida tão perfeita quanto imagino que seja possível.

 

3. Não parece haver nada que abale este governo. Um membro do executivo insulta um programa de jornalismo da televisão pública e nada acontece. É perigoso. É um sentimento de impunidade crescente tão criador de clivagens sociais quanto a promoção de ideários populistas.

 

4. Portugal descobriu, de repente, as falanges de trabalhadores orientais que tem dentro de fronteiras subsistindo e trabalhando em condições miseráveis e sub-humanas. Quanto tempo demorará a esquecer tudo outra vez?

 

5. Jerónimo preocupa-se muito com os trabalhadores da Groundforce e pouco com os da Galp. A refinaria de Matosinhos já parou a produção. O que deixou de produzir e é necessário para o país será importado. O resto será um rombo nas exportações e nos dividendos gerados. Trabalhadores de mãos e pés atados e destino traçado.

 

6. O negócio do lítio começa a ser, lentamente, revelado e começam a esfumar-se as promessas de qualquer tipo de retorno económico ou, até, ambiental, que se veja, para o país. Antes pelo contrário. Ai os nossos rios e cursos de água. Ai as nossas paisagens. O ambiente é um negócio e uma hipocrisia.

 

7. Uma das singelas bandeiras do Bloco, arrancada a ferros do útero contraído do governo PS, o chamado “estatuto do cuidador informal”, revela-se, afinal, uma medida para meia-dúzia, como, aliás, ninguém com dois dedos de memória não poderia deixar de esperar. O governo diz que faz, diz que dá, põe na lei, mas a prática, esse inexorável critério da verdade, é outra. A prática é outra.

 

8. Parou agora de chover. Procurei por um arco-íris, mas não o encontrei. Hoje não tive essa sorte.

publicado às 14:50

Devemos ficar preocupados com o resultado das eleições?

Passam hoje cinco dias da noite eleitoral de domingo último o que representa, em termos relativos contemporâneos, uma eternidade. Como é normal nestas coisas, ainda os votos não estavam suficientemente contados, já os candidatos e os representantes políticos faziam as suas declarações e os comentadores elaboravam as mais profundas reflexões sobre os resultados previstos pelas sondagens à boca das urnas.

 

Para todos aqueles que, frequentemente, se queixam do enviesamento e condicionamento da opinião pública, para os quais as várias empresas de sondagens objetivamente concorrem, a verdade é que a classe política, com as suas extemporâneas reações aos resultados de meras sondagens, ainda que feitas à saída do ato eleitoral, sem esperar por resultados mais consolidados, contribui ativamente para valorizar e credibilizar o “sistema” das sondagens.

 

E se é verdade que estas últimas sondagens, as que são feitas à boca das urnas, se revelam bastante precisas com respeito aos candidatos ou partidos, conforme o caso, mais votados, relativamente aos menos votados, todavia, se mostram perfeitamente inúteis, admitindo margens de erro da mesma ordem de grandeza das próprias votações esperadas.

 

Relativamente a estas últimas eleições presidenciais, todas as sondagens divulgadas acertaram no primeiro, no segundo e terceiro lugares. Quanto aos outros lugares, houve distribuições para todos os gostos, incluindo uma que colocava João Ferreira, o 4º classificado final, em 7º.

 

A partir dessas projeções traçaram-se, de imediato, os mais negros quadros. André Ventura, que podia chegar ao 2º lugar, com uma votação na ordem dos 15%, representava um perigo para a democracia, seria capaz de condicionar o PSD e exercer influência governativa a curto prazo à semelhança do exemplo de outros países europeus. Tiago Mayan, da iniciativa liberal, tinha também um excelente resultado podendo igualar ou superar os resultados da esquerda, estando uma inevitável reconfiguração da direita em curso.

 

Afinal, contados todos os votos, Ventura obteve uns meros 11,9% e Mayan uns míseros 3,22%. Estes resultados representam um sinal de preocupação? Em si mesmos, é evidente que não.

 

É precisa muita falta de memória para nos assustarmos com isto.

 

Em primeiro lugar Mayan. O crescimento da “onda liberal” equipara-se ao crescimento da “onda” de Vitorino Silva que obteve votação equivalente. Fica-se por aqui a análise à antecipada “onda liberal”.

 

Em segundo lugar, Ventura. Uma votação de 11,9% está em linha com outras votações em candidatos antissistema. Em 2016 Marisa Matias teve 10,12% de votos e em 2011 Fernando Nobre teve 14,1% de votos só para dar dois exemplos de votações semelhantes sem qualquer tipo de consistência política ou ideológica traduzidas numa total ausência de sequência eleitoral. Bem entendido, não me estou a referir aos candidatos individualmente, mas antes às características do voto que recolheram. Podia dar outros exemplos. Há razões para temer que a votação em André Ventura seja de natureza diferente? Não.

 

Relativamente à questão tão falada e ansiada da reconfiguração da direita, queria acrescentar ainda o seguinte. No dia em que Passos Coelho voltar ao PSD, coisa que se está a preparar nas sombras, pacientemente à espera que este governo caia de maduro, nesse mesmo dia acaba-se a Iniciativa Liberal e o Chega. A existência de ambos os projetos políticos só se justifica pela fixação dos quadros neoliberais e populistas que ficaram órfãos de partido com a saída de Passos e a entrada de Rio e pelo enfraquecimento da liderança deste último. Ponto. Esqueçam lá outras teorias e ideologias complexas.

 

Ventura ter tido 11,9% de votos é um resultado fraco que não vai além do mero voto de protesto a que as eleições presidenciais sempre tão bem se prestam e que tantos outros candidatos no passado conseguiram usufruir. No atual contexto, em que a direita deveria supostamente estar revoltada com a ação de Marcelo Rebelo de Sousa e a sua aliança com o governo PS, conseguir aglomerar apenas 11,9% é extremamente modesto. Se nestas eleições, com tudo a seu favor e com a abstenção que se verificou, Ventura não foi além deste resultado, acho que podemos todos dormir descansados à noite.

 

Se não devemos ficar assustados com o resultado eleitoral propriamente dito, devemos, sim, ficar preocupados com a cobertura mediática crescente, despudorada até, por parte dos jornais e das televisões, ao Chega e a André Ventura. Não me venham com a história de que o que é chocante ou grotesco vende mais jornais. O que se tem passado é uma objetiva valorização da mensagem da extrema-direita e, isto sim, pode ter consequências graves. Os 11,9% de votos aliados a uma cobertura mediática permanente podem, sim, fomentar uma curiosidade e uma ignorância que se podem converter, a breve trecho, num monstro incontrolável. Não há memória de um partido com 1,29% de votos nas últimas eleições ter a segunda ou terceira maior cobertura mediática registada nas eleições seguintes. Isto não é uma questão de mediatismo. É uma questão de escolhas, de escolhas editoriais, as mesmas que tantas vezes censuram um partido histórico, institucional e responsável como o PCP e o reduzem ao mínimo de visibilidade. É, antes de tudo, de escolhas ideológicas que se trata e é nosso dever exigir à comunicação social as suas devidas responsabilidades.

 

Quanto à crise da esquerda, não há novidade. PCP e BE mostram bem a encruzilhada política em que se meteram, vítimas da sua própria política de alianças de “mal menor” — com o PS, entenda-se — traduzida, nestas eleições, no voto útil dos portugueses e, em particular, dos seus próprios eleitores. Nem BE, com o seu voto contra face ao orçamento de estado, nem PCP, com o seu permanente apoio ao governo PS, conseguiram lucrar politicamente com isso, tendo assistido, impotentes, ao seu eleitorado divergir para Marcelo, maioritariamente, ou para Ana Gomes. Faça o que fizer, a esquerda não se consegue libertar da camisa de forças que vestiu.

 

O BE é, claramente, vítima do seu próprio discurso histórico de convergências de esquerda a qualquer custo, discurso esse que o coloca à mercê de qualquer candidato da área do PS que exiba algum grau de irreverência ou de não conformismo.

 

O caso do PCP é, claramente, mais grave. Continuamente a perder número de votos, eleição após eleição, joga o seu melhor quadro, o seu melhor candidato, numa espécie de tudo ou nada e, mesmo assim, obtém menos 2000 votos que Edgar Silva nas presidenciais de 2016 e que, na altura, tinha ficado marcado como o pior resultado de sempre do partido. O PCP tem toda a legitimidade para seguir este caminho de “renovação” e de alianças com a social-democracia burguesa, mas tem que perceber que, ao fazê-lo, ao se converter numa força da mesma espécie das que já existem, subtrai-se eleitoralmente.

 

O que é preocupante não é, pois, o resultado de André Ventura. Não há nenhuma ascensão do fascismo em Portugal nem da extrema-direita liberal. O país é, essencialmente, o mesmo que sempre foi com todas as suas virtudes e defeitos e a democracia é um bom espelho do nosso povo. A resposta eleitoral que foi dada mostra-o com clareza. O que é preocupante é outra coisa: é ver, por um lado, uma comunicação social a alimentar, por todas as formas, a besta fascista e, por outro, as forças progressistas completamente fora de jogo.

publicado às 13:29

João Ferreira, o único

Fiquei feliz, ontem. Acho que, como eu, uma parte dos eleitores de esquerda estava a desesperar por um momento assim: um político comunista a vencer um debate de ideias, assim, claro, preto no branco, sem ponta de contestação, face a um não comunista, particularmente um despudoradamente vestindo a camisola liberal.

 

João Ferreira nunca desilude verdadeiramente. Está sempre bem preparado, domina os vários temas, é ideologicamente muito sólido, é um excelente orador e ainda, como bónus, consegue sempre manter a sobriedade e a calma. Até ao momento, tem estado muito bem nos debates em que tem participado.

 

O debate contra André Ventura foi o que lhe correu pior, mas só com muita boa vontade é que podemos chamar àquilo que se passou um debate. André Ventura é alguém com uma capacidade invulgar em disparar mentiras, algumas bastante óbvias, e meias verdades e, a partir de determinado momento, limitou-se a berrar repetições de Coreia do Norte e Venezuela, desrespeitando as intervenções de João Ferreira e boicotando o debate até ao fim em perfeita consonância com a medíocre moderação da TVI. O pior momento de João Ferreira, na minha perspetiva, foi ter feito de advogado do governo na questão indefensável da nomeação do procurador europeu.

 

Ao contrário dos demais candidatos, João Ferreira é o único, Presidente Marcelo incluído, que parece conhecer o texto da Constituição da República, citando-a quase artigo a artigo. Isto diz muito sobre a competência das pessoas que estão a concorrer para um cargo onde, supostamente, a função principal é zelar pelo cumprimento da Constituição da República.

 

Voltando ao princípio do texto, é verdade que, contra um candidato como o que a Iniciativa Liberal apresenta, não era muito difícil brilhar. Tiago Mayan Gonçalves, de seu nome, apresenta-se com um conjunto de ideias tão frágeis, tão abundantemente refutadas pela realidade das sociedades capitalistas mundo fora que é muito difícil até que sejam articuladas num discurso minimamente inteligível sem o recurso aos chavões anticomunistas do costume. Nem isso, todavia, esse candidato conseguiu produzir, engasgando-se e enganando-se até (!) na Coreia com a qual queria atingir o candidato comunista. Não era a Coreia do Sul, Tiago, era a do Norte! Neste particular, acho impressionante a quantidade de gente das universidades que apoia isto, que alimenta este tipo de ideias. É revelador sobre a qualidade intelectual que tem tomado conta e preenchido o mundo académico no nosso país.

 

O debate contra Mayan foi, pois, amplamente dominado de princípio a fim por João Ferreira, traduzindo-se por uma vitória ideológica em toda a linha. Na verdade, é assim que devia de ser. Quem viu o debate teve a oportunidade de ver alguém que sabe do que fala, que argumenta logicamente, que explica o que se passou e faz propostas inteligíveis para resolver os problemas, alguém moderado e que faz sentido para além dos nossos gostos pessoais. Do outro lado, viu-se um conjunto de preconceitos económicos e ideológicos, de conceções utópicas e de apelos ao egoísmo, ao individualismo e ao bolso do povo, preconceitos que, verdadeiramente, nunca deram resultado em parte nenhuma do planeta, nem na América, o farol do capitalismo mundial, resultam. Preste atenção: o primeiro era o candidato comunista, o segundo era o liberal.

publicado às 14:31

Revelações de ano novo

Não há ano novo que não venha acompanhado do já tradicional rol de aumentos de impostos e de preços. Este ano chamou-me a atenção o aumento daquela taxa que o povo paga todos os meses na sua fatura da água, que diz respeito à recolha e tratamento de resíduos sólidos, o que realmente constitui coisa admirável. As últimas décadas assistiram à privatização generalizada destes serviços de recolha de lixo pelas cidades do país, venderam-nos que a gestão privada é que era, potes de ouro no final do arco-íris, duendes e tudo o mais, mas afinal, gestão privada assim, também eu: é pedir ao papá estado para aumentar os impostos sobre o povo sem que este possa sequer estrebuchar e, então, é que é gerar lucros que é uma maravilha. Três vivas ao capitalismo!

 

Também fiquei a matutar com uma frasezinha dita pela jornalista, que muitos dos aumentos dos preços — o do pão, por exemplo — seriam devido ao aumento do salário mínimo nacional, visto os padeiros ganharem todos o salário mínimo, imagino que sim. Esta justificação tem muito que se lhe diga, não haja dúvida, mas, assim, sem que lhe acrescentemos o que quer que seja, é suficiente para servir de peneira para separar as esquerdas que se apresentam no plano político. Sabem? Aquela que até se gosta de chamar de social-democrata, daqueloutra que é esquerda a sério, revolucionária, que não quer deixar pedra sobre pedra. É que é mesmo assim: aumenta-se o salário mínimo, anuncia-se o mundo ao povo trabalhador miserável e, no mesmo suspiro, as empresas aumentam os preços de tal modo que ficamos sem saber bem se o que sobra nos bolsos do proletário é mais, é igual ou é menos do que antes dos aumentos respetivos.

 

É por isso que não bastam medidas pontuais, ainda que importantes nem que seja simplesmente para dinamizar de algum modo mais ou menos psicológico a economia por via do consumo. É preciso fazer a outra parte que apenas a esquerda revolucionária (onde é que ela anda?) está disposta a fazer: controlar a economia, controlar a especulação dos lucros, definir metas e tetos, impor responsabilidade social, essa mesma responsabilidade que é exigida a todos os cidadãos, que vem até plasmada na malograda conta da água em taxas para que os resíduos sejam bem tratados. A todos os cidadãos exceto, bem entendido, aos daquela classe que possui as rédeas do poder há tempo demais e a quem se permite que explore os recursos à medida do seu apetite pelos lucros. Um apetite que, a cada ano que passa, é maior, mais voraz e mais descontrolado.

publicado às 22:42

O pior dos patrões

Se este Pedro Nuno Santos é a face da “esquerda” do PS, então está tudo dito sobre o que é que se entende por “esquerda” nos dias de hoje. O governo faz na TAP o que qualquer patrão gostaria de fazer com as suas empresas: a reboque da pandemia, reduzir custos com o pessoal, despedir, renovar, embaratecendo a mão de obra, otimizar proveitos... à custa dos trabalhadores. Com essa atitude coloca-se do lado do capital — como se alguém duvidasse das suas convicções —, legitimando, simultaneamente, todas as malfeitorias levadas a cabo neste período pelo patronato em geral. Antecipo-me, claro: de certeza que está para breve o anúncio de cortes drásticos na câmara de lordes, excelentes gestores não executivos e executivos, que tão bem têm zelado pelo bem da companhia e pelos interesses do país. Isto da crise é para todos...

publicado às 18:17

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