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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Como é que o Brexit se tornou num enxovalho à democracia?

Como é que foi?

 

Quer dizer, fez-se um referendo, fez-se campanha pelo sim, fez-se campanha pelo não, o povo foi chamado a dizer de sua justiça, a maioria disse sim e, passados três anos da consulta popular, nada aconteceu.

 

Bem entendido, o primeiro-ministro demitiu-se, foi substituído, a substituta andou durante a maior parte destes três anos a negociar não se sabe bem o quê — tenho ideia que a ideia será fazer o Brexit mantendo tudo na mesma no que à alta finança diz respeito — e agora anda a tentar aprovar esse deal no seu parlamento onde tem sido objeto de debate por brexiters e remainers que não se entendem — claro que não se entendem! Como é que se haviam de entender? — a não ser em rejeitar continuamente qualquer acordo e qualquer alternativa.

 

Como é que o Brexit se tornou num enxovalho, neste lamentável enxovalho, à democracia?

 

Se o povo britânico decidiu sair da União Europeia, coisa à qual nunca, verdadeiramente, pertenceu, então que saia. A saída devia ser inevitável e inexorável com ou sem acordo entre as partes. Depois, então, negociaria tudo aquilo que entende negociar com a União Europeia assim como o faz com qualquer outro país. Mas não era exatamente isso que era pretendido, autonomia e soberania? Claro que há consequência económicas envolvidas! É natural que as haja: afinal, cada opção política que se toma tem um preço. Podemos não o ver nitidamente — como nós, portugueses, não o vimos quando aderimos à União —, mas ele existe — começamos a vê-lo agora, claramente. Ao invés, a classe política do Reino Unido prefere alimentar este folhetim parlamentar degradante ao mesmo tempo que não dá cumprimento ao desejo expresso do seu povo.

 

Como é que o Brexit se tornou num enxovalho à democracia?

 

É fácil.

 

Primeiro, porque a classe política britânica utilizou o Brexit, e lançou-o no seio das suas populações, como arma populista de jogatana política.

 

Segundo, porque grande parte da população viu no Brexit, muitos de forma verdadeiramente inocente, a solução das suas frustrações sociais legítimas jamais atendidas pelas políticas centrais britânicas.

 

Terceiro, porque o Brexit veio a corporizar um sentimento de inveja, xenófobo e racista latente na sociedade britânica, fruto de muitas transformações que ao longo de décadas mudaram a sua face.

 

Quarto, porque um segmento da sociedade britânica considera absolutamente intolerante esta crescente veia autoritária, prepotente, arrogante e opressora da União Europeia, desta União Europeia germânica que com um banal agitar de dedos faz dançar o patético fantoche francês sobre o seu colo.

 

Quinto, porque a classe política, aquela que no primeiro ponto desencadeou todo este processo, está mais preocupada em assegurar os interesses da sua gorda burguesia do que em cumprir a vontade do seu povo.

 

Conheço várias personalidades — vocês também devem conhecer, estou certo — que gostam de fugir às questões e ao debate apontando a agulha para o chamado “exemplo britânico” no que a uma democracia “madura” diz respeito. Pessoalmente, sempre abominei este provincianismo de se pensar que os outros são melhores do que nós e que é no estrangeiro que se encontra a virtude. A minha resposta é sempre a mesma: viaja! Vai ver o mundo! Porque é mesmo isto: quando não viajamos acreditamo-nos no que nos dizem.

 

No século XV, por exemplo, antes da epopeia dos descobrimentos, dizia-se que o mar abaixo de Marrocos não era navegável, que era repleto de monstros marinhos que engoliam embarcações de uma só vez e que terminava num precipício sem fim. E nós acreditávamos. Foi preciso ir até lá para se ver a verdade. Voltando à questão, nunca tomei lições do que quer que fosse, muito menos de democracia, de um país monárquico com uma câmara de mais de setecentos lordes sustentados a peso de ouro pelo erário público. Sempre me causou impressão. Mas para os outros, aqueles que andam sempre com o “exemplo britânico”  na ponta da língua, a situação atual deve causar algum embaraço.

publicado às 18:00

A Filosofia vem depois. A Ciência está-nos a estupidificar.

Tenho a impressão que já partilhei este pensamento, mas ainda assim — demasiado preguiçoso para pesquisar as entradas deste blog — escreverei algumas linhas sobre o tema.

 

A disciplina do pensar, do refletir, do projetar, a Filosofia, nome tomado emprestado dos gregos antigos e que elegantemente significa “amor pela sabedoria”, foi ao longo de milénios um pilar estruturante das sociedades ocidentais, tendo atingido o seu auge durante a civilização helénica. A religião, que dominou fortemente as sociedades pós-clássicas, também não deixa de ter uma componente filosófica vincada, embora segundo uma interpretação pré-definida da realidade. Quero com isto dizer que as sociedades construíam-se segundo uma determinada bússola, chamemos-lhe moral. O que se fazia fazia-se de uma determinada forma, segundo um conjunto de princípios considerados corretos.

 

Descontadas todas as exceções, o que acontece hoje em dia, nas sociedades contemporâneas, é muito diferente. A célebre frase de René Descartes, Penso, logo existo, serviu não como lema para a criação de uma nova Filosofia moderna inserida numa revolução científica mais ampla, como era o original intuito do autor, mas como epitáfio à Filosofia como um todo. Com efeito, a obra do génio francês, o seu brilhante contributo conjunto matemático-filosófico, terá sido aquele ponto singular que, na linha da História, fez com que a Filosofia perdesse toda a sua relevância em favor da Ciência, de uma nova Ciência que, hoje em dia, tudo domina.

 

O resultado de tal transformação tem-se revelado sinistro. Em vez de termos sociedades governadas por conjuntos de princípios, por uma moral e por uma ética, temos sociedades movidas unicamente pelo egoísmo e pela ganância que procuram na Ciência as justificações para o seu modo de agir. A Filosofia que vinha antes, agora vem depois e isso faz toda a diferença.

 

Veja-se o que se passa com o aquecimento global, por exemplo. Desde logo, encontramos grupos de cientistas advogando em sentidos diametralmente opostos sobre a influência humana no processo. E eu pergunto: para que é que precisamos de cientistas e de ciência nesta discussão? Não é óbvio que a poluição está a destruir o ambiente e os nossos recursos? Isso não deveria bastar?

 

Não. Isso não basta.

 

Nesta sociedade globalizada em que vivemos, parece que temos que ter uma figura de bata branca a dizer-nos o que temos que fazer mesmo que o que tenhamos que fazer seja absolutamente evidente. E agora, mais espantoso ainda, um grupo cada vez maior de figuras de bata branca começa a inundar o espaço mediático para nos dizer que, sim senhor, que a poluição está efetivamente a destruir o planeta, como se nós já não soubéssemos disso. Porque o fazem agora? Porque descobriram algo novo com o seu método científico à prova de bala? Algo que não soubessem antes? Não. Fazem-no agora porque os interesses económicos para os quais trabalham têm um grande interesse em fazer uma nova fortuna a vender-nos carros elétricos.

 

Ninguém pergunta se as baterias elétricas são poluentes — são e são muitíssimo perigosas para os nossos lençóis freáticos. Ninguém pergunta se as baterias elétricas são sustentáveis, isto é, se temos capacidade elétrica para sustentar um mercado de carros elétricos — não, não temos, nem que, por artes mágicas, duplicássemos o número de barragens. Ninguém pergunta se, em termos globais, um carro elétrico consome menos energia que um carro a gasolina — não, não consome, consome mais. Ninguém pergunta isto, ou muitas outras pertinentes questões, às figuras de bata branca, porque isso não interessa. O que interessa é ludibriar as populações e fazer negócio para as elites burguesas. Isto é o que se chama Filosofia ao contrário, Filosofia subvertida. Primeiro existe o interesse, depois encontramos a justificação filosófico-científica para legitimar o interesse. Primeiro o interesse, depois a filosofia. A Filosofia vem depois.

 

Outro segmento da sociedade que me desperta o interesse é o da educação e este é particularmente luminoso para o ponto que pretendo passar neste texto. As filosofias educativas parecem ser elaboradas à medida dos objetivos que as sociedades ocidentais pretendem atingir neste domínio. E que objetivos são esses? Ter as melhores estatísticas possíveis relativamente ao abandono e ao sucesso escolares. A educação é um instrumento — o instrumento de eleição — de propaganda das nossas sociedades. O que dizer? Adoramos ser enganados.

 

O que interessa que um aluno médio saia do nosso sistema sem conseguir ler duas páginas de texto consecutivas? O que interessa que não saiba escrever duas linhas de texto inteligível? O que interessa que não saiba a História ou a Geografia do seu país? O que interessa que não saiba fazer uma simples conta aritmética sem a ajuda do telemóvel? Não interessa nada. O que verdadeiramente interessa é que tenha feito o seu percurso de doze anos com as melhores notas possíveis e sem chumbos pelo meio. Isso é que é motivo de regozijo e exaltação bacoca para presidentes e primeiros-ministros.

 

Como este é o objetivo, adota-se uma filosofia educativa conveniente para justificá-lo: uma filosofia que demonize retenções de ano, que veja com maus olhos a disciplina e que carregue sobre o Professor toda a responsabilidade do processo de aprendizagem dos alunos. Se o aluno não aprende, então é porque o Professor não soube explicar bem a lição ou não soube motivar o aluno. Reparem como, neste caso, é apropriada uma filosofia educativa que coloca o aluno no centro do processo educativo, como um ente que contém dentro de si à partida todo o conhecimento necessário e que apenas necessita que alguém externo, o professor, desencadeie nele um processo de revelação. Alternativamente, o aluno é como que um pedaço de lousa limpa a aguardar por uma gravação mágica do conhecimento essencial a giz, pelo professor. Também aqui a Filosofia vem depois. Primeiro vem o interesse, depois vem a filosofia educativa.

 

Qualquer pessoa que tenha estudado, e não apenas passado pela escola, reconhece que disciplina, esforço e dedicação são condições fundamentais para qualquer processo de ensino-aprendizagem. Qualquer pessoa com um mínimo de bom-senso percebe que o Professor é um mero catalisador deste processo, um orientador do estudo. O aluno deve ser o centro das aprendizagens, mas através da responsabilização em todo o processo. Ao aluno deve-se exigir que estude e que seja educado. Estes princípios têm que vir primeiro. É isto que está certo. É isto que funciona para se aprender. O problema é que aprender não é o objetivo do sistema. O objetivo do sistema é passar os alunos pelo próprio para se dizer que a educação é brilhante.

 

Faz-nos muita falta mais Filosofia e menos Ciência. O primado da Ciência sobre tudo o resto está-nos a estupidificar. Já não questionamos. Já não pomos em causa. Já não refletimos. Já não imaginamos. Apenas repetimos o que as figuras de bata branca nos dizem.

publicado às 13:13

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