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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

A classe que sempre se espezinhou

Neste país, de mentalidade vincadamente burguesa e de inspiração católica bafienta, o caminho por uma mais justa distribuição da riqueza tem sido muito lento e muito penoso. As pequenas conquistas são sempre custosas e raramente se sustentam numa real transferência de capital entre classes económicas, assentando antes em processos redistributivos no seio das classes mais desfavorecidas e à boleia de vagas de crescimento macroeconómico.

 

De entre todas as classes profissionais do país — de entre todas elas — aquela que mais perdeu no que diz respeito ao seu nível sócio-económico, aquela que sempre se espezinhou, que se fez hábito calcar e perseguir, foi a classe dos professores. Puxe-se pela memória, eu sei que é difícil!, mas lembremo-nos de um professor no início dos anos noventa.

 

Não existe um aspeto da profissão de professor que não esteja radicalmente pior: salário, horário de trabalho, condições de trabalho, burocracia, estabilidade, progressão e perspetivas de carreira. Há outras profissões que se podem rever nesta descrição, de acordo, mas nenhuma perdeu tanto e em tantos domínios simultâneos quanto os professores perderam. No início dos anos noventa um professor auferia um salário que o colocava claramente na parte de cima da hierarquia da sociedade. Hoje rivaliza, em termos de preço-hora, com os funcionários de limpeza doméstica. Tinha um horário de trabalho de vinte e duas horas, com eventual redução com a idade. Hoje tem um horário de trinta e cinco horas e ainda leva trabalho para casa. Tinha turmas, em geral, pequenas e era respeitado socialmente. Hoje tem turmas entre trinta a quarenta alunos que o desrespeitam e cujos pais o desrespeitam. A burocracia associada ao seu trabalho era uma ínfima parte da que tem que produzir nos dias de hoje. O processo de obtenção de um vínculo efetivo de trabalho era mais rápido e tinha perspetivas de chegar ao topo da carreira em tempo útil se cumprisse com o seu trabalho, coisa que hoje não tem porque se criaram cotas e esta surrealidade da “avaliação de professores” que toda a gente, professores incluídos, acha muito bem.

 

Por ventura, dirão alguns, os professores partiram de uma posição mais privilegiada do que as outras classes e, por isso, perderam mais num processo de nivelamento por baixo. Talvez. Olhemos para outras classes, então, que também partiram de um nível elevado. Olhemos para os médicos. Apesar de todos os ataques a esta profissão, de toda a degradação da mesma, os médicos não perderam tanto quanto os professores perderam. Porquê? Porque razão os professores sempre se deixaram espezinhar pelos sucessivos governos?

 

A razão encontra-se no facto de os professores nunca terem feito greves, isto é, greves a sério. Ao longo destas últimas três décadas, as greves dos professores foram sempre frouxas, com medíocres adesões e/ou às cavalitas das greves dos funcionários das escolas. Quando se ensaiava qualquer coisa mais séria, a classe era facilmente difamada e insultada pelo governo, pela comunicação social e forças reacionárias. Eram “as criancinhas” e os alunos que não poderiam ficar sem ter aulas ou sem fazer exame. Nos últimos trinta anos, a melhor coisa que os professores conseguiram fazer foi aquela manifestação enorme de 2008 no Terreiro do Paço em Lisboa. Quer isto dizer que, de um modo ou de outro, nenhum governo teve uma real oposição por parte desta classe e é por isto mesmo que esta classe se deu tão bem ao espezinho. Foi fácil espezinhar os professores: primeiro, havia o que roubar; segundo, era fácil roubar porque não havia resposta veemente ao roubo. Para os governos, foi juntar o útil ao agradável.

 

Parece que, desta vez, os professores estão a levar a cabo uma ação de luta concertada e séria, quer dizer, decidida. O governo já encetou ações fora da lei, como tem sido seu apanágio sublinhe-se, para condicionar esta greve às reuniões de avaliação. Decretaram serviços máximos para serviços que não têm urgência nenhuma, à semelhança do que também têm feito com as greves nos setores da energia e outros.

 

Espero que os professores não desmobilizem. A história e a história dos professores portugueses, em particular, diz-nos que se não lutarmos, perdemos definitivamente tudo. E os professores... já não têm muito a perder.

publicado às 08:35

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