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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

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A falácia do "novo mercado de trabalho"

Ontem de manhã ouvia uma tal de Manuela Ferreira Leite falar na rádio. Entoava uma ladainha morna e rouca sobre o código de trabalho. “O trabalho de hoje em dia não é como antigamente”, dizia, “é dinâmico, as pessoas trabalham à tarefa e a partir de casa”. “O código de trabalho tem que refletir este dinamismo”, este “novo mercado de trabalho” que existe.

 

Sobre este assunto e sobre esta argumentação queria expressar duas notas breves.

 

A primeira é que, invariavelmente, é-nos impingida a falácia de que o trabalho com direitos e com regras é coisa velha e antiga ao passo que o trabalho desregulado e liberalizado é coisa genuinamente nova. Não há nada de mais rigorosamente falso. Antes da revolução, portanto, há coisa de quarenta e quatro anos, amontoavam-se os camponeses, todos os dias, nas chamadas praças de jorna, à espera que o capataz os viesse buscar para trabalhar ao dia. Todos os dias repetia-se a mesma cena. Não havia fixação de salários, não havia horários de trabalho, não havia direitos. Repare-se que estamos a falar de um tempo muito próximo, de um passado muito recente, mas que o discurso da gente da estirpe de Manuela Ferreira Leite faz parecer distante e a nossa memória coletiva de peixe de aquário também promove esta ideia.

 

O natural desde sempre na história do Homem é o trabalho sem direitos, é o trabalho liberalizado. O trabalho com direitos e estabilidade é uma exceção que foi muito recente e, malogradamente, efémera.

 

A segunda nota que queria deixar é a seguinte. A necessidade de estabilidade e de segurança é uma das necessidades hierarquicamente mais importantes para o ser humano. Segurança no trabalho, como na habitação, como na alimentação, segurança física e segurança emocional, são condições fundamentais para a felicidade do ser humano, já dizia Maslow. Pensar que, apenas porque hoje em dia usamos computadores mais avançados, tablets e smartphones, essa necessidade deixou, por artes mágicas, de existir, é, mais que uma ilusão, um engodo. O truque para perceber bem isto é pensar em nós próprios, no que queremos e não no que queremos para os outros.

 

O que acontece é algo diferente. As gerações estão a estupidificar-se naquilo a que chamaria de celebração da juventude ignorante. Nas sociedades, tudo é dirigido aos jovens que crescem a pensar que são os reis do universo, ao mesmo tempo que os seus estilos de vida vão sendo sustentados pelas gerações mais velhas que também contribuem para o alimentar desta mistificação. Por não pensarem no dia de amanhã, os mais jovens deixam que as sociedades se desregulem, abraçam a selva e a lei do mais forte que vigora. Vai chegar o dia em que estes balões de oxigénio que vão carregando a nossa sociedade se vão, inevitavelmente, esvaziar. Aí, quando as gerações mais jovens deixarem de poder comer na casa dos pais, nesse momento, poderemos observar a verdadeira face do novo mundo do trabalho. Aí, diremos à gente da estirpe de Manuela Ferreira Leite para ir pregar para outra freguesia.

publicado às 21:33

Depois da geringonça

A sucessão de eventos da política nacional tem concorrido para suportar aquela tese que tem vindo a ser defendida neste blog: o PCP rendeu-se definitivamente a uma posição ora de indisfarçável embaraço, ora de humilhação declarada. É uma humilhação de quem perdeu o pé na estrutura ideológica onde caminha, de quem já não sabe muito bem distinguir entre o essencial e o acessório, confundindo constantemente o último com o primeiro. O essencial é o património ideológico. O essencial é o revolucionar da sociedade burguesa. O acessório é este fogacho de poder e as esmolas que se conseguem conquistar ao poder burguês.

 

Aprovado mais um orçamento de estado, mesmo depois de ter sido enganado pelo governo, em orçamentos anteriores, com a patifaria das cativações, o PCP propôs medidas concretas para regulamentar o código de trabalho. Esta semana, o governo rejeitou todas as medidas apresentadas votando ao lado da direita parlamentar, como aliás tem sido seu apanágio. O mesmo governo que precisa do apoio do PCP para aprovar orçamentos, vota com a direita em tudo o que é política essencial e estrutural, nomeadamente no que diz respeito ao código de trabalho e à segurança social tão essenciais que são para qualquer política séria de redistribuição de riqueza, seja ela qual for. Precisamente por saber disto mesmo, o governo joga à direita. E o PCP encolhe os ombros.

 

Perante isto — que é uma verdadeira afronta política reiterada — o PCP encolhe os ombros; e coloca cartazes que dizem “Nós propusemos, o governo rejeitou”; e põe o Jerónimo em comícios a choramingar as traições da companheira política adúltera. É este o ridículo a que está votado o PCP. É esta a camisa de sete forças na qual o partido voluntariamente enfiou os seus braços. É este o embaraço. É esta a humilhação de um partido que se arrisca a perder tudo, o pouco ou o muito, consoante o ponto de vista, que lhe restava: a sua espinha dorsal.

 

Nas ruas os trabalhadores lutam sozinhos. Na Autoeuropa, na Galp, na Triumph, na Gant e em tantos outros locais, os trabalhadores e trabalhadoras lutam sozinhos. Os sindicatos permanecem adormecidos, inoperantes, paralisados de movimentos. Na Assembleia da República ninguém vale aos trabalhadores. Nenhuma palavra inconsequente lhes vale. Nenhum projeto de lei condenado desde a nascença ao fracasso lhes vale. Eles lutam sozinhos. Nunca conseguirei compreender como esta posição minoritária do PS se transformou numa posição de força inabalável. Nunca conseguirei compreender como uma força real — a força de fazer cair um governo de um momento para o outro — se transformou em fraqueza tão evidente que até soa a cobardia. E acho que muitos outros, como eu, também não.

 

Não sei o que será do PCP depois da geringonça e isso preocupa-me, porque não sei o que será do país sem a força deste pilar ideológico que tanta falta lhe faz. A força de ser diferente, em coerência e em exemplo, esbateu-se. Esbateu-se a frase “estamos ao serviço do povo e dos trabalhadores”. Esbateu-se a frase “nunca tivemos oportunidade de governar”. Esbateu-se até mesmo a frase “somos diferentes”. A oportunidade de ser diferente é agora. A oportunidade de influenciar a governação é agora. A possibilidade de mostrar serviço ao povo trabalhador é agora. É agora e foi ontem e será amanhã num amanhã que se abrevia rapidamente com o passar dos dias.

 

Ao PCP sobrará apenas a esperança de que o eleitorado lhe reconheça alguma influência positiva nesta geringonça que está para acabar e que isso lhe possa valer para voltar mais tarde, mais forte. O PCP, em suma, joga toda a sua mão na memória do eleitorado, coisa peculiar que nunca lhe valeu antes e que não consta que tenha valido alguma vez a alguma força política. Não consta, sequer, que essa massa informe a que se chama de “eleitorado” seja dotada dessa importante faculdade quando, pelo contrário, nas suas ações e dinâmicas se aparenta mais a um peixe de aquário do que a outro animal qualquer.

 

Quando a geringonça acabar o país que restará será um gémeo apalermado e algariado do Portugal de Passos e de Portas. A diferença essencial é esta mesma: um clima económico expansionista, que se vê na concessão desenfreada de crédito — a qual já faz soar campainhas de alarme no Banco de Portugal —, alicerçado numa bolha turística que se agiganta a cada dia que passa, ou seja, alicerçado em coisa nenhuma. A par disto, há as reposições de direitos a reformados e a funcionários públicos. Isto é anedótico para ilustrar uma política socialista séria, para dizer o mínimo. Também é alarmante enquanto política e estratégia económicas a médio e longo prazo. Já este ano começaremos a aferir da consistência desta política quando o Banco Central Europeu começar a cortar na compra de títulos de dívida pública. Também aqui, exigia-se ao PCP uma outra resposta. Acreditar que reposições de salários — ainda por cima setoriais — resolvem, por si só, problemas económicos estruturais é coisa para partidos irresponsáveis e demagogos.

 

Mas a resposta do PCP é outra, é a mesma desde o princípio da geringonça: é ter um pé dentro e outro fora, é dar o aval com uma mão e apontar o dedo com a outra, para tentar passar a ideia desesperada de que tudo o que é positivo a ele se deve, ao mesmo tempo que tudo o que é negativo ao governo deve ser assacado. Tristes figuras, estas que têm os destinos do PCP nas mãos... não percebem que o resultado final será aquele que é rigorosamente simétrico ao que pretendem.

publicado às 18:53

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