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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

O caráter que é construído com base em desculpas

O que considero mais relevante em todo este vergonhoso caso dos “estudantes” — vamos colocar aspas nesta palavra, a bem da correção linguística — expulsos de Espanha em viagem de finalistas e que acho importante sublinhar é a cada vez maior ausência de responsabilização quer do sentido dos próprios quer da exigência de terceiros, dos mais próximos, pelos atos cometidos.

 

A juventude de hoje em dia aprende cedo a dizer coisas como “não fui eu”, ou “foi ele” ou ainda “não sou o único a fazer isto”. Quase todos têm estas frases debaixo da língua. Com elas aprenderam a subir os degraus da vida sem assumirem uma responsabilidade que seja e com os pais a desculparem-nos e a defenderem-nos perante os outros. É todo um caráter construído assim, desculpa após desculpa, na família, na escola e na vida.

 

Há aqui um exercício de paternidade que é medíocre, mal formado, sem estrutura, sem regras e sem fronteiras. Já aflorei esta temática por mais que uma vez neste blog. Mas neste tipo de paternidade contemporânea que será motivada por um desejo bacoco de superproteção das crianças, e que se estende até à idade adulta rompendo todos os limites do ridículo, também existe uma ideia subjacente da nossa posição perante os outros, perante a comunidade. Esta ideia, que é muito própria do sistema capitalista, sugere que tudo vale para vingar, que os fins justificam os meios e que é lícita toda e qualquer ação que permita o lucro máximo seja em que contexto for. Isto implica, naturalmente, uma ausência de consciência de que nos devemos responsabilizar pelos nossos atos e, mais, se outro vier a assumir a culpa por nós, tanto melhor.

 

Este é o quadro de valores com que formatamos as gerações que se avizinham. Não é de estranhar que apareça tanta gente a desculpá-los. Os atos de vandalismo ocorreram efetivamente. Todavia, há que desculpar os meninos. Desconfio que o Hotel ainda vai ter que os indemnizar. Observemos com atenção as cenas dos próximos capítulos deste vergonhoso caso.

publicado às 21:50

Notas sobre os últimos desenvolvimentos na Síria

A comunicação social continua na sua demanda de fabricação de factos sobre a guerra na Síria. Não interessa que já se tenha descoberto dezenas de fotografias manipuladas no Photoshop, normalmente de meninos em estado de choque com a guerra. Não, não interessa. Há sempre um facto novo a imputar sempre ao mesmo lado, ao lado que convém denegrir, que é o lado do governo Sírio.

 

Desta feita, foi o suposto ataque com armas químicas. De imediato, o rumor foi suportado por uma enxurrada de fotografias e de relatos totalmente parciais e sem qualquer tipo de fiabilidade ou credibilidade. Novamente, se isso não interessou no passado, também não interessa agora que não haja qualquer tipo de credibilidade. As pessoas acreditam-se e pronto.

 

Desta vez, o facto criado foi suficiente para o governo americano ordenar um ataque sobre uma base aérea da Síria onde supostamente terá sido ordenado o suposto ataque químico. Parece mais uma daquelas histórias idiotas dos mesmos que nos trouxeram o famoso arsenal de armas de destruição maciça do Iraque? É verdade, parece mesmo. Falo em governo americano porque só um analfabeto poderá dizer que isto saiu da cabecinha pensadora de Trump. A própria Killary Clinton já veio a público dizer que este ataque só peca por tardio. Quem pensa que com Clinton seria diferente devia dedicar-se a outra coisa qualquer, como trabalhos manuais, e estar calado. O governo americano tem vida própria e move-se independentemente do débil mental que ocupa a Casa Branca e a questão Síria nada tem a ver com direitos humanos ou com outras razões igualmente inocentes. A questão Síria é uma questão económica estratégica. É uma questão política. É uma questão de defender os interesses da burguesia americana e o seu domínio sobre os recursos na região.

 

Este ataque americano, todavia, poderá originar repercussões muito graves para o governo dos Estados Unidos. Descontando a Austrália e o Reino Unido — e Israel, eventualmente —, ou seja, dos apêndices imbecis da América, o mundo em geral está a ver com muito maus olhos esta intervenção. É que é mais do que uma evidente agressão a um país soberano, de governo democraticamente eleito — sublinhe-se, porque nunca é demais sublinhar —, que está a lutar praticamente sozinho contra um grupo de radicais islâmicos que aterroriza o mundo. É também uma certa transformação da correlação de poderes no mundo. Rússia e China, juntos, poderão fazer os Estados Unidos começar a pagar pelos crimes que têm vindo a cometer mundo fora. Os Estados Unidos criaram e armaram Bin Laden e a sua Al-qaeda. Agora fizeram o mesmo com o Estado Islâmico. Não é de estranhar que, ao mesmo tempo, no preciso momento em que a América lançava os cinquenta e nove mísseis sobre a base aérea Síria, o Estado Islâmico lançava um ataque sobre posições do exército sírio na estrada Homs-Palmira. O Estado Islâmico é uma criação dos Estados Unidos e cumprem por ora um papel bem definido naquela zona.

 

Por cá, também não faltam os idiotas úteis do costume, sempre céleres na sua apologia ao politicamente correto, a tomar posição sobre o que lhes é soprado precisamente pelos órgãos de comunicação social fieis ao regime americano. Neste particular, ouvia esta tarde o Bruno Nogueira, um comediante que gosta de tomar posição sempre que diz umas piadas, a dizer uns disparates disfarçados de insultos sobre o Assad a quem atribuía a culpa definitiva sobre os supostos ataques químicos, dos quais, evidentemente, não tem qualquer dúvida sobre a sua ocorrência ou responsabilidade. Este é precisamente o tipo de idiota útil ao sistema capitalista. Fala sem saber, acredita-se em informação enviesada, e emite opinião rápida, sensacionalista, baseada em falsas evidências e numa estrutura de princípios tão pueril quão manipulável. O problema é que este tipo de idiota útil tem a capacidade de formar uma grande falange de pessoas distraídas que se ficam pela espuma do sensacionalismo mediático e se escudam nos seus altos conceitos ocidentalizados de direitos humanos, democracia e liberdade. Não têm contexto, nem cultura, nem história. Opinam sem sabedoria. Não têm paciência para mais. Só querem é jogos de computador, séries e filmes, sexo e sentimentalismo barato, tudo o que seja gratificação instantânea. Mas são muito boa gente, lá isso são.

http://images.huffingtonpost.com/2016-05-14-1463254278-5592062-spiritualpollutiontv.gif

O partido desta boa gente, lamento dizê-lo, é o Bloco de Esquerda, sempre tão rápido a votar ao lado da direita votos de condenação e outros que tais sobre os supostos ataques químicos do governo Sírio e legitimando os bombardeamentos americanos sobre a Síria. Em termos de política internacional, o Bloco de Esquerda é de uma ignorância que não cessa nunca de me espantar. Quando penso que já estou a contar com tudo o que de lá possa vir, lá aparece algo de novo. É assustador, deveras, se pensarmos que tanto do que é política e estratégia nacional deve ser entendido como parte de um processo global, que nos devemos saber posicionar internacionalmente e que, para o fazermos com inteligência, temos que saber interpretar com sabedoria os caminhos da história política do planeta. O Bloco de Esquerda assume um discurso que é muitas vezes de rutura com o sistema mas, ao mesmo tempo, aceita cegamente tudo o que é dito nos livros de história desse mesmo sistema. De duas uma: ou é um partido de imbecis do ponto de vista intelectual, ou as suas verdadeiras intenções não coincidem com aquilo ao que realmente vêm.

publicado às 22:48

Os Pobrezinhos

“Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

 

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

 

— Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

 

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

 

— Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

 

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto

 

(— Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)

 

de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

 

— Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

 

o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

 

— Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu.

 

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros

 

— O que é que o menino quer, esta gente é assim

 

e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

 

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

 

— Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar

 

e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

 

Na minha ideia o padre Cruz e a Sãozinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

 

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis".

 

— António Lobo Antunes, in Livro de Crónicas

publicado às 08:43

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