A propósito da morte de Fidel Castro, recordo a sua passagem por Matosinhos, onde discursou durante cerca de três horas no pavilhão a que se chama Centro de Desportos e Congressos. Não tenho a certeza de quanto tempo Fidel discursou, na verdade. Fidel era um orador assim, falava de improviso e tinha sempre muito para partilhar com os outros.
A data do evento foi 17 de outubro de 1998. Fidel havia-se deslocado a Portugal por ocasião da VIII Cimeira Ibero-Americana organizada naquele ano na cidade do Porto. O evento paralelo e fugaz de Matosinhos era, todavia, uma espécie de festa-comício de solidariedade Portugal-Cuba organizada pelo Partido Comunista Português, o único partido que, ainda hoje, se solidariza com o regime cubano. As pessoas confundem solidariedade com identificação e aceitação para com todos os axiomas do regime cubano, mas são conceitos diferentes, na verdade.
Ainda hoje, é interessante verificar que as reações mais abjetas à morte de Fidel provêm de partidos e órgãos teoricamente situados à esquerda no espectro político e não propriamente da direita, em geral. Creio, de mim para mim, que a questão cubana é uma das questões centrais para percebermos de que matéria ideológica somos feitos e, mais ainda, se somos homens de consciência plena ou rapazinhos a brincar à política e ao politicamente correto.
Desvio-me do que quero contar. O ano era 1998. Estávamos a mais de um ano de entrar na moeda única e havíamos entrado no clube europeu há relativamente pouco tempo. Os fundos europeus que nos começavam a inundar criavam a ilusão de que a nossa economia era melhor do que aquilo que realmente era e de que podíamos viver eternamente como enteados da Europa, sempre à espera de encher os bolsos à custa da mesada devida. Recordo as palavras de Fidel quando denunciou a armadilha em que caíamos voluntariamente. Nesse dia de 17 de outubro de 1998 Fidel disse que nos tornaríamos a curto prazo num país lacaio das grandes potências europeias e apontou o euro como o último prego no caixão da nossa soberania.
As palavras pareciam claras quando saiam da sua boca, substantivas, carregadas de conteúdo, marcadamente pronunciadas no seu castelhano com sotaque cubano característico, como era seu timbre, mas muitos de nós não podíamos acreditar plenamente. Acreditávamos em tese, bem entendido, mas sempre pensávamos para nós próprios, secretamente, que tal não se viesse a verificar. Mas veio. Palavra por palavra.
Fidel era um líder sábio, dono de um amplo conhecimento e mundividência que ia muito para além das fronteiras da sua ilha. Amava aprender. Amava perguntar porquê. Amava perceber os por que's. Interessava-se pela vida do seu concidadão, por perceber as suas angústias. Amava a arte em todas as suas formas. Amava a igualdade e a democracia. Amava o seu país e amava o seu semelhante.
É certo que Cuba tem um regime de partido único. Mas, dentro das fronteiras desse regime, a livre associação é uma realidade e as eleições internas que ocorrem regularmente na ilha têm taxas de participação brutais. Essas taxas deviam ser objeto de profunda análise das democracias ocidentais, as quais registam, em média, taxas de abstenção de mais de 50%. O analfabetismo e a iliteracia são pragas virtualmente erradicadas em Cuba. A maioria dos cubanos detém um grau académico de nível superior e, desde o nível primário até ao nível superior, os estudos são totalmente gratuitos. Como também é gratuita toda a assistência médica. Como também é gratuito o alojamento, o acesso à arte e à cultura.
Isto é igualdade e isto é democracia. Ponto. Comparem-se estes índices com qualquer outro país no mundo. E compare-se também a criminalidade e a paz social. Não é possível. Não há comparação. Ponto.
É verdade que Cuba tem pouco para distribuir e que podia obter melhores resultados se mais tivesse. Também é verdade que, mesmo após a normalização de relações diplomáticas com os Estados Unidos da América, o bloqueio económico sobre ilha prossegue, asfixiante.
É mentira que haja censura. É mentira que alguém seja impedido de escrever um livro ou de compor uma canção. É mentira que grupos politicamente avessos ao regime não se possam reunir e manifestar. Pelo contrário. Quem diz o contrário não sabe do que fala.
Um dos problemas é que as pessoas falam de Cuba sem nunca lá terem posto os pés, falam apenas com base no que lhes diz o preconceito gerado pelos media capitalistas. Alguns que lá colocam os pés decidem fazer montagens de imagens retiradas sem contexto cultural e analisadas sem qualquer laivo de bom senso. Mais: é frequente apontar-se defeitos à sociedade cubana como se no nosso próprio bairro esses mesmos defeitos não existissem em dobro ou, pior, como se ao regime cubano, apenas por ser o que é, não se possam admitir quaisquer tipo de defeitos.
Esta análise é muito própria do capitalismo: aos regimes não capitalistas, não alinhados, não se admite nada menos do que a perfeição e qualquer falha é exagerada e empolada ao máximo. Algumas reportagens sobre a morte de Fidel parecem já ter sido preparadas há anos para serem divulgadas na hora da sua morte. Isto sim, isto é censura da boa, lavagem cerebral no seu melhor.
Neste particular, destaco a execrável peça biográfica apresentada pela RTP por um “jornalista” chamado de João Pacheco de Miranda. Nessa peça, o jornalista conseguiu a hercúlea proeza de condensar todos os chavões e todos os lugares-comum que era possível dizer sobre Cuba. Achei particular piada ao automóvel a ser puxado por um cavalo e ao ênfase dado ao transporte de uma gaiola de pássaro.
É engraçado: eles, os cubanos, com um e dois cursos superiores cada um, com todas as garantias objetivas que é possível ter para a felicidade, são como pássaros engaiolados e nós, portugueses, europeus e ocidentais, que temos que lutar todos os dias pela nossa côdea de pão e que recebemos doses industriais de Casas dos Segredos, novelas e música ordinária, somos livres. É muito engraçado mesmo.
Também é engraçado que, das várias vezes que estive em Cuba e passeei, livremente, pelas cidades e vilas, sem qualquer tipo de proteção ou de receio — facto praticamente singular em todo o continente americano —, nunca vi um cavalo e nenhum automóvel avariou durante o privilégio que foi circular a bordo daquelas verdadeiras peças de museu dos anos cinquenta. É estupendo como o “jornalista” da RTP conseguiu encontrar um cavalo a puxar um carro! Que papel, Sr. João Pacheco de Miranda! Que papel! É isto o livre jornalismo. É desta forma que o capitalismo (re)escreve a história. Parabéns!
Naquele evento de 17 de outubro de 1998 participou o Jorge Palma e o Luís Represas. Lembro-me deles. Acho que participou mais gente, mas não me recordo. Também falou o José Saramago. Depois falou Fidel. Terão sido três horas, podiam ter sido cinco ou seis. Era um prazer ouvir Fidel discursar. Essa era a sua riqueza. Fidel morre sem nada seu, sem nenhum bem. A sua vida foi para o povo. O seu legado é a sua vida e o seu exemplo. Hasta siempre! Obrigado!