Sobre a propaganda dos fundadores
Há muitas individualidades que, no seu espaço de comentário, perdem demasiado espaço a escrever não sobre o que é a realidade, mas sobre o que era suposto que esta fosse. E seja este um exercício não completamente inútil, a verdade é que a repetição do mesmo não nos faz avançar um milímetro que seja no nosso caminho coletivo, sendo verdade que a descrição da história do que era suposto que tivesse sido não nos conduz a lugar nenhum.
Por razões meramente conjunturais, o tópico que tem suscitado maior interesse é a chamada “Europa dos fundadores”, a tal Europa da “solidariedade”. Já escrevi neste blog sobre o assunto. Fui muito claro na exposição do logro e, mais do que isso, da armadilha económica e financeira que essa “Europa dos fundadores” lançou sobre todos os países ao seu alcance, tendo-os capturado com sucesso, Portugal incluído. Não me repetirei neste espaço, não obstante não me furtarei a sublinhá-lo: essa “Europa dos fundadores” nunca existiu na realidade, não foi um projeto, não foi mais que um canto de sereia.
Um outro tópico que também é chamado aqui e ali por algumas individualidades, nomeadamente por Pacheco Pereira, é o “PSD de Sá Carneiro”, que é um subtópico da temática mais geral denominada a “social-democracia dos fundadores”. Há aqui uma mistura injucunda de idealismo, inocência e de estupidez.
Quando se cria uma ideia, seja ela qual for, ela vem acompanhada de camadas e camadas de boas intenções e de propaganda. É natural que assim seja. A necessidade de que seja vendida a ideia, de que seja aceite pelas multidões, é superlativa relativamente à verdade ou à autenticidade da coisa. É por isso que é fundamental separar o que é pragmático do que é abstrato e, embora seja importante dispor de memória para refrescar o mundo contemporâneo — que, em regra, não a tem — das boas intenções anunciadas para que nunca as percamos de vista, é totalmente infrutífero insistirmos nessa lembrança com o intuito objetivo de reavivar a identidade de uma coisa que, simplesmente, nunca se corporizou ou que nunca deixou o seu estádio gasoso e idílico.
Esse é precisamente o caso da temática da “social-democracia dos fundadores”. Creio que também já escrevi algures neste blog sobre isto. Discorria, então, sobre aquilo a que chamei de “sistema social europeu”, intimamente ligado à social-democracia europeia. Creio que retomar a sua leitura ajuda a separar aquilo que, nesta matéria, se prefigura como o trigo e aquilo que mais não será que vulgar joio no que é politicamente pragmático, isto é, no que realmente é social-democracia, e no que é politicamente relativo, ou seja, mera contingência para a sobrevivência política.
A social-democracia nunca foi essencialmente distinta do que é hoje, as condições de hoje é que são — elas sim — diferentes do que eram em meados do século XX ou no período pós-grandes-guerras. Nesses períodos, era necessário estabelecer diferenças marcantes com o Marxismo, ao mesmo tempo que roubar ao Marxismo as suas principais bandeiras. Daí obtermos uma visão muito mais suave e progressista dos movimentos sociais-democratas desses tempos.
Mas ainda que a social-democracia fosse efetivamente diferente do que é hoje, ainda que, por momentos, pudéssemos crer piamente em toda a propaganda da sua fundação, isso teria como consequência o fim, o colapso, de toda a ideologia social-democrata contemporânea face às evidências da história. Não pode a social-democracia subsistir igual a si própria, fiel ao sistema capitalista, assistindo em simultâneo a esse mesmo sistema desmantelando todo e cada membro do estado social, do sistema de previdência e assistencial. Passado mais de um século, a social-democracia que, na sua fundação, se opunha ao Marxismo essencialmente por não ser revolucionária, observa o sistema capitalista tão igual como então na promoção das desigualdades e na manutenção dos poderes burgueses. Se a tudo isto a social-democracia assiste desde a privilegiada cadeira do poder não se opondo e respondendo politicamente de modo concomitante, então devemos desvalorizar a chamada “social-democracia dos fundadores” do mesmo modo que desvalorizamos os anúncios de detergentes que prometem lavar toda a loiça com uma só gota de produto. É a mesma coisa: chama-se propaganda.
Para além disso, quem são estes “fundadores”? Poderia realmente a social-democracia ser aquilo que era prometido, quando as vozes que o anunciavam provinham sobretudo das cavidades mais conservadoras da sociedade? De onde vieram Sá Carneiro e seus companheiros, se não da Assembleia Nacional fascista?!
Analogamente, a verdade é que não podemos tomar este governo PS como exemplo, como é óbvio, daquilo que é a natureza desse partido claramente enquadrado no espaço social-democrata. Não é por ter acontecido uma aliança parlamentar com partidos de esquerda, de natureza totalmente circunstancial e com o único objetivo de sobrevivência política, que se pode apagar uma história inteira de acordos, entendimentos, alianças e políticas... à direita.
O que aconteceu nesta legislatura é pontual, passageiro e de natureza particularmente incómoda para o PS. Se António Costa não tivesse feito o que fez, hoje muito provavelmente estaria morto politicamente. Também o PS se denomina socialista, também na sua fundação se dizia a favor da igualdade e dos direitos dos trabalhadores, também se colou ao movimento comunista enquanto isso lhe pareceu interessante e também contribuiu, como partido de poder, para o estado lastimável da sociedade portuguesa, engolida a tragos decididos pela ávida gula do monstro capitalista. Também sobre o PS podemos falar dos “fundadores”, mas não vale a pena: é só propaganda... É só propaganda.