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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Retrato de tiranete

Uma vez mais a cena repete-se o que faz das ocorrências anteriores não episódios infelizes, fruto de um mau dia ou de uma reação menos ponderada — ainda assim igualmente condenáveis, bem entendido —, mas antes parte intrínseca da matéria com que o caráter do personagem é feito.

 

Com efeito, Rui Moreira tem muita dificuldade em lidar com a crítica. Mais: Rui Moreira tem muita dificuldade em lidar com opiniões diferentes das suas. Depois das lamentáveis reações à oposição da CDU à solução de concessão da recolha de resíduos na cidade, depois de, em plena reunião da Assembleia Municipal, ter sido retirada a palavra ao vereador da CDU e de este, em conformidade, ter-se retirado da reunião como forma de protesto, vem agora o Presidente da Câmara do Porto, qual tiranete, criticar ferozmente os comunistas por estes colocarem legítimas reservas à possibilidade dos funcionários da EPorto — a concessionária privada que vai explorar o estacionamento na cidade — em colocarem avisos de pagamento nas viaturas como se agentes de autoridade administrativa se tratassem sendo que, de momento, não possuem legalmente tal estatuto.

 

Acresce que, para tecer tais críticas à CDU intituladas “PCP mais uma vez contra portuenses”, e aqui o título é apenas o princípio do teor altamente difamatório e insultuoso do comunicado, Rui Moreira utilizou a página oficial da autarquia transformando aquilo que é a sua opinião pessoal na opinião institucional da Câmara Municipal do Porto. Não obstante, já não lhe chegava a sua página de Facebook para vomitar insultos: Rui Moreira tinha que escalar mais um degrau. Também não lhe chegou como exemplo o incidente diplomático que criou com Vigo quando depreciou publicamente o seu aeroporto e manchando, dessa forma, o nome da cidade do Porto.

 

Justifica-se, deste modo, o título deste post. Tiranete não é um tirano, é um pequeno tirano. É um indivíduo que se julga mais do que aquilo que é e que, por isso, abusa da sua autoridade ou posição para vexar os outros (retirado em parte de www.priberam.pt). Infelizmente, o retrato de Rui Moreira parece-se muito com isto. Não aceita uma crítica, não aceita uma opinião diferente da sua, não aceita um reparo sequer à sua forma de governar ou de fazer as coisas e logo reage selvaticamente, desmesuradamente, perde a compostura e a razão.

 

Parece que o mandato presidencial vai ser isto até final e, adivinhando-se a adoração popular de que padece e que muito contribui para este padrão atitudinal, teremos mais quatro anos deste lamentável espetáculo no município do Porto. Por vezes, faz-me lembrar os tempos áureos de Alberto João Jardim na Madeira. Será que no final do segundo mandato teremos um Porto “amadeirado”? O povo, como sempre, assim o dirá.

publicado às 10:15

Ainda os contratos de associação: a relação de parasitagem destapada

Havia qualquer coisa neste processo que me escapava. Não me satisfazia a explicação de que a eclosão desta problemática dos contratos de associação se devesse unicamente a uma agenda de desestabilização do governo. A isso se deve, com efeito, mas também se deve a outra coisa.

 

Porquê esta problemática, quando tais contratos encontram-se somente no final do primeiro de três anos acordados? Porquê agora esta discussão? Imbuído desta minha insatisfação, continuei a explorar, a buscar informação que me saciasse. Encontrei-a, por fim, e partilho-a nestes parágrafos que se seguem.

 

Ao que parece, os diretores destes colégios privados com contrato de associação pretendiam extrapolar os contratos firmados com o Estado, muito possivelmente a coberto das intenções do governo anterior, PSD-CDS, cujas pretensões incluíam um aumento gradual das transferências de verbas do orçamento de estado da educação para o setor privado. Em cada um dos três anos de contrato, respetivamente o 7º, o 8º e o 9º anos de escolaridade das turmas criadas, os colégios pretendiam formar novas turmas de 7º ano originando, deste modo, uma espiral dificilmente quebrável pelo Estado. A ideia era eternizar os contratos de associação, já que existiriam sempre novos alunos a iniciar o seu ciclo de estudos no setor privado, justificando-se, assim, que o Estado prolongasse os contratos por mais anos.

 

O problema foi suscitado agora porque é nesta altura que estes colégios se preparavam para angariar novos alunos. Parece que o Ministro da Educação lhes disse para “aguentarem os seus cavalos” e que estas situações haviam de ser aferidas individualmente.

 

Afinal, tudo aquilo que escrevi anteriormente sobre este caso confirma-se em dobro. Toda esta questão se resume aos privados quererem mais rendas e mais subsídios por parte do Estado. É nestas alturas que se vê de que matéria os liberais são feitos: o fervor com que defendem a eternização de uma relação de clara parasitagem sobre o Estado chega a ser chocante. Ademais, esta situação afeta e contamina, mais do que a democracia, a liberdade, por eles, pelos privados, tantas vezes invocada em vão nos tempos últimos.

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publicado às 13:09

Tempos obscuros. Tempos rudes.

Vivem-se tempos obscuros, obscuros pela sua rudeza, no que à vida política diz respeito. O debate político não consiste mais numa manifestação clara de intenções e numa disputa de argumentos lógicos e fundamentados. O jogo político transformou-se, degenerou-se, num exercício medonho de dialética com interseção vazia com as esferas da racionalidade e da lógica e recorrendo repetidamente ao insulto mais primário.

 

O mais recente episódio dos contratos de associação é um bom exemplo disto mesmo. A direita política consegue defender o indefensável no que a este caso particular corresponde. E o indefensável consegue, imagine-se, produzir sonoro eco na generalidade dos meios de comunicação, como que adquirindo deste modo a credibilidade que deve, por defeito de criação, à argumentação lógica, aos princípios e ao bom senso. Por sua vez, o Governo chega ao embaraçoso ponto de ter que defender a racionalidade e a objetividade das suas medidas.

 

Com efeito, requer-se que o Governo explique com minúcia porque quer deixar de pagar em duplicado no que concerne ao orçamento da educação, ao mesmo tempo que enfrenta uma série de factos insofismáveis: que as escolas privadas são muito melhores do que as escolas públicas, que as escolas privadas são o garante da liberdade de escolha e que é proibido receber e falar com os sindicatos. Fazendo uma resenha da argumentação da direita obtemos este lixo. E com este lixo que somos obrigados a lidar todos os dias enquanto esta febre dos contratos de associação durar.

 

Ao que parece, este estado de demência que assola o debate político, e que, em boa verdade, nada mais não é do que o reflexo de um processo de radicalização da direita política, veio para ficar. Oxalá que não seja mais do que isto. Oxalá que estes tempos obscuros, estes tempos rudes, não sejam pois assim como um prelúdio para uma viragem política de contornos sinistros. Uma viragem como aquela que o nosso país viveu, em circunstâncias não tão distintas como as que experimentamos hoje, no final da Primeira República.

 

publicado às 20:11

Vem aí mais uma brilhante ideia dos iluminados neoliberais

Chama-se Transatlantic Trade and Investment Partnership, abreviado por TTIP e traduzido para português como Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, e é a última brilhante ideia dos iluminados neoliberais para, dizem eles, impulsionar a economia norte americana, a europeia e, até mesmo, a mundial!

 

O acordo veio na algibeira de Obama na sua última visita ao velho continente e está a ser negociado da forma como os capitalistas mais gostam, em segredo, completamente a leste do crivo político e do horizonte democrático. Os outorgantes de tal acordo serão os Estados Unidos da América e a União Europeia, a qual, nestas questões, comporta-se claramente como uma federação e não como uma união, decidindo em nome de todos os seus estados membros. Aliás, é precisamente esse o objetivo do TTIP: passar por cima da vontade dos povos e impedir que os estados aderentes interfiram nas negociatas económicas estabelecidas entre a burguesia transatlântica.

 

Simultaneamente, os proponentes do acordo apresentam as melhores e mais otimistas projeções. Note-se que efetivamente é sempre assim. Foi assim com a criação da União Europeia, com o Euro, com cada um dos tratados de livre comércio assinados ao longo dos anos: as melhores projeções e intenções banhadas de uma cândida e subliminar ideia de inevitabilidade.

 

Os resultados, porém, nunca foram muito animadores. Estamos dotados, com efeito, de privilegiadas condições para observarmos à nossa volta os resultados de tais acordos: concentração da riqueza sobre os países mais fortes, aumento das desigualdades económico-sociais dentro de cada país e entre países, e retrocesso generalizado. Isto é o quadro geral com o qual podemos contar se o TTIP vier a ser aprovado.

 

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Não obstante, quando uma das partes é constituída pelos Estados Unidos da América, é justo que prestemos atenção a um outro tipo de problemas. Refiro-me, em particular, à questão dos organismos geneticamente modificados (GMO). Os Estados Unidos já conseguiram, pela sua enorme influência, infetar uma grande parte dos terrenos de cultivo mundiais com os seus produtos geneticamente modificados. Esses agricultores que aderiram aos GMO tornaram-se escravos da indústria americana já que os seus terrenos converteram-se estéreis ao cultivo de quaisquer outros produtos que não GMO's. Adicionalmente, tornaram-se também dependentes das panóplias de inseticidas, herbicidas e pesticidas que apenas a indústria americana produz e, sem os quais, a produção dos GMO's é impossível. Mais grave, todavia, é o facto da população mundial estar submetida, quase sem alternativa, ao consumo de tais produtos. Ainda subsistem entraves à generalização destas práticas em solo europeu e neste particular, estou seguro, este TTIP tratará bem do recado.

 

A propósito, surgiu a notícia de que os Estados Unidos da América preparam-se para libertar no arquipélago de Califórnia Keys, a sul da costa da Califórnia, milhões de insetos geneticamente modificados, dizem eles para combater as doenças tropicais como a malária e a dengue. Dizem que não há perigo, que é só um inseto que pretendem dizimar, pois o inseto GMO é infértil. Brincam com o fogo. Subvalorizam a importância daqueles insetos no contexto da biodiversidade. Atacam um problema não pela raiz, não pela origem do mesmo, mas remediando, isto é, criando outro potencial problema. Tudo isto é muito grave. E é com este tipo de mentes alienadas e dementes que estamos a negociar o TTIP.

 

Aedes aegypti mosquito

 

publicado às 10:26

A máquina retrógrada

O processo de metamorfose que conduziu a primordial RTP N, “N” de notícias, à atual RTP 3, passando também pela RTP Informação, uma espécie de estádio de girino, antecâmara para a sua forma final, não consistiu numa mera operação de cosmética no visual do meio de comunicação em causa. Foi mais do que isso: foi uma transformação de conteúdo.

 

Com efeito, para a composição dos quadros de “jornalistas” e “editores”, assim como para os painéis de “comentadores”, foi elaborada uma rigorosa e criteriosa escolha de personalidades. Repare-se quão ténue é hoje a diferença entre as designações jornalista, editor e comentador. A nomenclatura é usada aqui, portanto, com função de mera decoração linguística. A escolha, dizia eu, por obedecer a tão rigorosos critérios, resultou num grupo de personalidades que constitui hoje, atrevo-me a escrever, possivelmente não o mais reacionário canal de informação televisiva, mas seguramente o mais descarado, o mais desbocado e o mais petulante. Isto mesmo havia sublinhado neste blog, em jeito de nota de rodapé, aquando do início da carburação da dita máquina retrógrada.

 

Mas como qualquer “equipa vencedora”, o “plantel” da RTP 3 não é apenas constituído por caras novas e contratações sonantes, leia-se gente a quem o Capital decidiu premiar e estender a sua caridosa mão por tão devotamente saberem defendê-lo. Alguns dos que compõem a espinha dorsal do “onze titular” da estação já pontificavam naquela casa e, como toda a gente sabe, são sempre os “homens da casa” os que controlam o “balneário” e sabem unir a equipa.

 

É o caso de José Rodrigues dos Santos ao qual foi dada renovada liberdade no seio desta nova equipa para poder explanar o seu jogo a seu bel-prazer. Muitas pessoas têm ficado escandalizadas com o inexato gráfico que o senhor “jornalista” apresentou para explicar a evolução da dívida portuguesa e essa mesma revolta têm exprimido nas redes sociais.

 

https://1.bp.blogspot.com/-69bxbGmtgnI/VysqC-ZXvfI/AAAAAAAAEnc/3Sm-DL6uGiEs0n_1xKiZu02Bv22LoWkfQCLcB/s1600/JRS-Divida-publica-original.jpg

 

Este é simplesmente o episódio último da máquina retrógrada que é a RTP 3 ou, digamos, a por ora última jogada ou última finta, do “jornalista” em causa, e é verdade: o gráfico constitui efetivamente uma grosseira manipulação matemática na apresentação dos dados que supostamente o sustentam através de um processo de adulteração das escalas de ambos os eixos do gráfico. Este facto, facilmente comprovável, teve como objetivo hiperbolizar as conclusões que se pretendiam retirar e passar aos espectadores. Por outras palavras: o objetivo era condicionar e enganar o público.

 

Houvesse lei e justiça e este “jornalista” responderia e pagaria pelo que fez. Houvesse decência e ética profissional e o mesmo estaria já demitido das suas funções. Mas tudo isto é efetivamente natural, nem tão pouco o “jornalista” faria o que fez sem ter, nas suas costas, um “treinador” que dá a tática e o suporta.

publicado às 16:46

Colégios privados: quando não queremos que nos façam a nós o que fazemos aos outros

Neste final de semana de trabalho vemo-nos confrontados com manifestações de indignação por parte dos colégios privados que se atemorizam por uma ameaça hipotética de redução do seu financiamento público. Como foi lançada a suspeita e antes que a mesma se materialize em algo de concreto, os colégios privados juntam-se e erguem a sua voz corporativa na tentativa de retirar as hipotéticas ideias da cabeça do senhor ministro.

 

Toda a situação é muito incoerente desde o princípio até ao fim, bem entendido, desde a conceção do problema, passando pelo desenvolvimento deste status quo da educação em Portugal, até a este desfecho que, a verificar-se, não contém absolutamente nada de inesperado.

 

Não é de agora: o processo de desorçamentação da educação em Portugal não começou ontem, já tem décadas. A Revolução estabeleceu as condições, que vieram a ser prosseguidas posteriormente, de dotar o nosso analfabeto e inculto país de uma rede de escolas capazes de cumprir o desígnio da educação democrática para todos. O que os sucessivos governos PS-PSD vieram a fazer foi aquilo que podemos chamar de desmantelamento deste sistema, através de um processo de subcontratação a colégios privados que se traduziu, na prática, a uma transferência direta de verbas das escolas públicas para escolas privadas. Não é menos relevante notar que, nas escolas privadas, os alunos têm acesso, em média, a recursos muito mais pobres do que nas escolas públicas.

 

Com isto, os governos puderam fechar escolas, deixar de contratar professores e demais funcionários do sistema educativo, desorçamentando, deste modo, os dinheiros destinados à educação. Note-se bem que, ao contrário do que se possa à primeira vista pensar, este processo não produziu um cêntimo de lucro em prol do país. Um aluno no sistema privado custa, com efeito, mais dinheiro ao estado do que se estivesse inserido no sistema público. Porém, o objetivo de camuflar contas e de criar clientelas privadas agarradas, quais rémoras, ao tubarão estatal foi plenamente alcançado, tanto na educação como em outras áreas aliás.

 

Havia também um outro objetivo subliminar, mais ideológico: com a trajetória de empobrecimento estatal que o País vinha seguindo, tal estratégia de subconcessão na área educativa teria como finalidade última, por questão de pura lógica orçamental, a privatização indiscriminada do sistema educativo consubstanciada numa espécie de cisão do mesmo, isto é, uma escola para quem pudesse pagar e uma outra para quem não pudesse. Esse seria o plano a longo prazo.

 

Seja por uma razão, seja por outra, é perfeitamente natural que os colégios privados vejam o seu financiamento público severamente cortado. Estavam à espera de quê, afinal? Também é igualmente incoerente o seu posicionamento no contexto do problema. É que não há uma instituição de ensino privada, uma única arrisco-me a dizer, que não conte com o auxílio de dinheiros públicos para provisionar o seu funcionamento, desde a instituição mais modesta ao colégio mais selecionado. Que espécie de papel é este afinal?

 

Por fim, não deixa de ser irónico que os colégios privados, os principais empregadores de professores precários no país, sugando trabalho altamente especializado e capaz a preços de saldo, muitas vezes a menos de dez euros à hora, sejam eles próprios vítimas da sua situação precária, daquela que resulta do seu enquadramento na estratégia educativa portuguesa. No fundo, as suas manifestações de indignação têm como alvo uma manutenção imutável da sua situação de subcontratação face ao Estado. O que eles reivindicam, na verdade, é estabilidade na sua relação de subalternidade face ao Estado, algo que, a maioria deles, renegam abertamente aos professores que para eles trabalham, ano após ano, precários, sem saber o que esperar para o ano seguinte. Fica sempre mal quando não queremos que nos façam a nós o que fazemos, diariamente, aos outros.

publicado às 19:32

Palmyra libertada pelos compositores russos

Depois de auxiliar o exército sírio a libertar a milenar e belíssima cidade síria de Palmyra das mãos do Estado Islâmico, a Rússia levou um dos seus maiores maestros Valery Gergiev e a sua afamada orquestra Mariinsky Theatre Orchestra, de São Petersburgo, para realizar o concerto “Pray for Palmyra. Music Revives Ancient Ruins”, que teve lugar naquelas ruínas do anfiteatro romano de Palmyra no dia de ontem. No concerto foram interpretadas obras de vários compositores russos.

 

Porque tão relevante acontecimento, pela sua simbologia e pela sua beleza, foi mais ou menos ignorado pela comunicação social, fica aqui o registo.

 

 

publicado às 12:19

Donald Trump e a rede de estereótipos

Todos os “enviados especiais” e todos os “comentadores especializados em política internacional” concordam e afinam as suas opiniões sobre o assunto do momento: Donald Trump. Não existe uma ideia que introduza uma dissonância na harmonia previamente estabelecida: Trump é uma surpresa, Trump é um fanático não representativo da multiculturalidade americana e dos valores daquele país e, indubitavelmente, perderá mais cedo ou mais tarde.

 

A natureza das surpresas radica frequentemente nos quadros mentais de que dispomos para lermos e interpretarmos a realidade que nos rodeia. Quando esse quadro intelectual não é mais do que uma rede de estereótipos, então fica difícil observar com nitidez, fica difícil estabelecer relações um pouco mais complexas, estabelecendo-se, deste modo, um terreno fértil para sermos constantemente surpreendidos ainda que pelos acontecimentos mais triviais.

 

É exatamente isso que sucede com Donald Trump e com as análises que dele são feitas. É que os Estados Unidos da América constituem um país muito grande, um país de cinquenta estados, qualquer um dos quais maior do que um país europeu médio, todos diferentes entre si, com populações também muito diferentes. O que se poderá dizer a respeito disto a partir de um quartinho de hotel de Nova Iorque? Ou, pior, o que se poderá deduzir a este propósito a partir do que é dito por quem esteve hospedado no tal quartinho de hotel nova iorquino?

 

Diga-se o que se quiser, a América é a propaganda que dela é feita, é o estereótipo, já centenário, que é cuidadosamente construído em cada filme de Hollywood, em cada episódio de série exportada, em cada lugar comum, para os quais todos — os subordinados ao capitalismo — contribuímos.

 

E assim, da noite para o dia, o fenómeno Trump apanha-nos de surpresa aparvalhada. “Como é que a América dos imigrantes, da liberdade e das oportunidades aceita um tipo destes?”, perguntamos.

 

Mas a América não é só isso. A América da liberdade também é a América que tão tarde aboliu a escravatura e que até assistiu a uma guerra civil por esse motivo. A América também é o país das armas de fogo indiscriminadas e da pena de morte. A América dos imigrantes também é também a América da xenofobia, do racismo e da ku klux klan. A América das oportunidades também é a América da falta de solidariedade inerente à economia liberal de competição desenfreada. A América das oportunidades também é a América das desigualdades profundas e das classes socioeconómicas.

 

Isto mesmo seria possível vislumbrar desde a janela daquele quartinho de hotel de Nova Iorque, assim o enviado especial da TV ou da agência de notícias dobrasse o pescoço para o outro lado, deixasse o olhar fugir dos arranha-céus cinzentos de Nova Iorque. Logo ali, a seguir ao Rio Hudson, veria os guetos de Newark, em Nova Jersey. Também eles são a América. Também eles contêm americanos.

 

http://hmstummer.com/wp-content/uploads/2014/01/Binder14_File23_08.19.2000_Frame15.jpg

 

Como explicar o fenómeno Trump, então? Não precisa de explicação. Trump corporiza o ideal, o famigerado “sonho americano”, o modo de vida, um certo modo de compreender o mundo que tem tanto de sedutor quanto de ignorante. A pergunta certa não será “Como é que Trump está a ganhar?”, mas antes “Como é que Trump poderá perder?”, pois onde se sustentaria a indústria de propaganda de Hollywood se não nos ombros de Trump, ou de figura semelhante? Trump é a América por ora e, pelo menos, até ao dia em que os americanos decidam que o seu país deva ser alicerçado em princípios filosóficos muito diferentes daqueles que os têm governado. Enfrente-se a coisa de frente para lá da rede de preconceitos ocos que turvam a nossa visão sobre a América e sobre os americanos e, então, poderemos produzir opiniões lúcidas sobre o fenómeno Trump e antecipar as constantes surpresas.

 

Alguma coisa do que escrevi encontra-se por aí, distribuída por aí, entre páginas de livros e pedaços de filme. Não está nas primeiras páginas, mas vem ao de cima nas entrelinhas. Está n' As Vinhas da Ira e está nos Gangues de Nova Iorque, por exemplo, mas nem a isso os nossos enviados especiais e comentadores tiveram acesso ou tiveram a capacidade de interiorizar.

publicado às 14:01

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