Ornitorrinco de estado
Sobre o orçamento de estado para o ano corrente, e que já vai no seu segundo mês, os comentadores dizem que não é carne nem peixe. Há quem o compare a um ornitorrinco, uma bizarra criatura que vive no fim do mundo, na Austrália e Tasmânia, que é uma espécie de mistura de pato com castor e réptil, simultaneamente um mamífero sem mamas e ovíparo. Esta comparação é demasiadamente gratuita e vazia.
O que se tem dito sobre o orçamento de estado aponta no sentido de que o mesmo procura agradar tanto à esquerda como à direita. Antes pelo contrário, o texto final, ainda não aprovado, tem desde já o singular dom de inverter os papéis das forças políticas envolvidas. Perante um documento que, no essencial, mantém a dose de leão de austeridade da receita alemã, salpicada aqui e ali com uma pitada de boas intenções keynesianas, a direita ao invés de aplaudir rejeita e a esquerda apoia quando coerentemente se devia opor.
É claro que a leitura anterior é demasiado simplista e existem justos fatores que levam as partes a agirem em contraponto com a sua natureza própria.
Para a direita trata-se da sobrevivência da única coisa que sustenta atualmente o seu decrépito corpo, a sua retórica balofa, a qual procura desesperadamente ajustar a este cenário salvando-a com a rejeição de um orçamento que, acaso permanecesse no governo, seria muito bem capaz de propor à Assembleia da República.
Para a esquerda trata-se de um texto carregado de esperanças subliminares e improváveis que a toda a força quer transformar em realidade e consubstanciar numa inversão de políticas. E, por isso, apoia.
Bem vistas as coisas não poderia ser outro o posicionamento das peças no tabuleiro. O ornitorrinco deste orçamento não é um animal que queira agradar a todos por exibir partes de todos: é um animal que representa a subversão da natureza de todos e de cada um.