Olhando de passagem para a realidade, como se por entre ela, por entre os seus sinuosos caminhos, viajássemos a bordo de uma carruagem de um comboio temporal, diríamos que estamos a passar por paisagens repetidas. Olhando pela janela da carruagem, o que vemos não é novo, já foi visto antes do dobrar do século, ou seja, há cerca de cinco horas atrás.
Vemos um tempo funesto, um tempo de “senhores engravatados e de aparência muito séria” a debitarem o que o povo deve pensar, enquanto trabalha, e repetir, enquanto toma um café ou uma cerveja na tasca que o acolhe depois da labuta. O tempo dos “pais do regime” já devia ter sido enterrado. Devia ter ficado para trás sobejando na memória apenas em quantidade suficiente para não ser esquecido e não ser repetido no futuro. O tempo que calcorreamos hoje, hoje mesmo, agora!, devia ser o tempo da cultura, do conhecimento, da consciência ativa, do povo. Este tempo, este que se seguiu a todas as conturbações sociais, a todas as revoluções, a todas as emancipações, a todas as conquistas, devia ser o tempo em que o povo todo, desde o mais humilde ao mais letrado, tomasse em mãos as ferramentas que lhe foram concedidas pela instrução da democracia e lhe desse boa utilidade na consciencialização e intelectualização das problemáticas que o envolve e, ativamente, tomasse decisão oportuna no seu interesse coletivo.
Todavia, a realidade choca com o ideal com uma crueza violenta. O povo que temos, a geração saída da instrução da democracia, prefere o “conhecimento” injetado pela televisão, ao conhecimento dos livros e das escolas, voltando-se para estas últimas e dizendo enormidades como: “eu odeio Matemática” e “não preciso disto para nada”. Esta geração, devemos reconhecê-lo, não é muito melhor do que a dos seus pais e a dos seus avós. Em alguns casos podemos até observar uma certa inversão geracional. No fim de contas, permanecemos como o rebanho de ovelhas, que sempre fomos, à procura de um pastor para seguir.
É natural, portanto, que esta geração de povo se constitua como o mais propício solo para o germinar dos tais “senhores engravatados e de aparência muito séria” de que falava acima. É tristemente irónico verificar que a democracia não conseguiu libertar o povo da sua apetência natural por líderes autocráticos e mais: o cidadão médio rejeita resolutamente (e bem) conceitos como ditadura mas aceita-os placidamente desde que enfeitados com outros nomes.
Os tempos que se vivem na Europa não auguram nada de muito virtuoso. O tratamento que é feito dos acontecimentos que se sucedem é, em geral, medíocre e parcial e contribui para um estado de alma dos povos propenso aos regimes mais retrógrados e reacionários. Verifica-se que, sejam quais forem as circunstâncias, a comunicação social também não se consegue libertar dos seus pastores. Dela não emerge um grito que seja. Pelo contrário, os jornais, as televisões, as agências de comunicação, recitam a mesma ladainha, a mesma homilia de condicionamento do pensamento. Em Portugal a situação não é distinta. Todos os sinais descritos são bem percetíveis. Também sentimos uma usurpação clara de poderes e tentativas de bloqueio de ação entre os órgãos do poder. A tudo isto assistimos serenamente. Veremos qual a próxima estação onde o nosso comboio temporal parará.