Independentemente dos resultados das eleições de hoje, importa chamar a atenção para o óbvio, apontar energicamente para a nudez do rei.
Enquanto o voto não deixar o papel e passar a ser eletrónico, Portugal continuará a ser objetivamente uma democracia do passado. O voto eletrónico apenas tem vantagens: é mais transparente, é blindado à corrupção eleitoral, facilita a contagem dos votos, faz dispensar as famigeradas atualizações de cadernos eleitorais que já têm barbas, é muitíssimo mais acessível a todos.
Enquanto esta transformação, inevitável diga-se, não avançar, continuaremos a ter defuntos a votar, sacos de votos a serem despejados, sobretudo nos meios mais pequenos.
O poder sempre enche a boca com a tecnologia e a inovação e, todavia, face a esta evidência, nada faz nem tão pouco projeta fazer. Também esta atitude resulta clara. O voto em papel é uma outra forma do poder se perpetuar.
Ontem Manuel Alegre referiu-se a Álvaro Cunhal para apelar ao voto dos comunistas no partido socialista. Manuel Alegre, que se candidatou em 2011 à Presidência da República contra o seu próprio partido, o tal partido que se chama de socialista, e, então, dizia que o seu partido não servia e que ele, Manuel Alegre, era o “candidato da cidadania” e da “sociedade civil”, vem agora apelar ao voto no partido socialista.
Manuel Alegre devia ter um pouco de vergonha e, no caso de já não deter as capacidades suficientes para o fazer, alguém deveria cuidar dele e da sua imagem. Sobretudo para não referir o nome de Álvaro Cunhal da maneira leviana que o fez. Fica-lhe mal, como a um velho a dizer obscenidades. Álvaro Cunhal, concordando ou não com a sua perspetiva ideológica, era um homem de caráter, com espinha dorsal. Manuel Alegre, pelo contrário, é capaz de trocar rapidamente de camisa por um pacote de amendoins e uma candidatura a Belém.
O apelo, esse, é estéril, é absurdo. Apenas um não comunista poderia votar no partido socialista. Mais: apenas um não socialista poderá votar no partido socialista.
Reconheço plenamente a importância do voto secreto na democracia. Reconheço-o mas, por vezes, pondero...
Por vezes, imagino que cada pessoa devia dizer abertamente em quem vota. Mais: devia ser marcada na testa respetiva a sigla do partido em quem votou, sigla essa que duraria pelo período governativo em questão. Claro que depois caio na real e esqueço tamanho disparate. Perder-se-ia muita liberdade a troco de muito pouco.
Acho que estas coisas assaltam-me o pensamento porque a nossa era é a da irresponsabilidade. Ninguém se julga responsável por nada e é célere a exibir um indicador em riste para apontar a culpa alheia. Muitas vezes apetece dizer:
“Olha-te ao espelho! Estás sempre a chorar mas olha para a tua testa, olha a sigla que está lá marcada. Foste tu que os meteste lá, porque votaste neles a quem apontas o dedo ou porque nem sequer foste votar. Assume a tua responsabilidade.”
Mas ninguém assume a sua responsabilidade. A culpa é sempre da corrupção e das mentiras que disseram na campanha eleitoral e sobre si próprios paira sempre uma aura de inocência e de impotência perante a coisa.
Não obstante, depois de quatro de outubro a história, tudo aponta, repetir-se-á. Não obstante, continuo à espera de uma surpresa.
publicado às 09:54
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