A indecência intelectual continua
Não há volta a dar. Não existe um assunto, um acontecimento, um fenómeno que seja, que usufrua da mais que singela bondade de ser tratado com decência. E dessa decência também não exigimos muito. Queremos apenas que seja de natureza intelectual.
Não fugindo à regra, deparamo-nos com o tratamento dado à questão dos “migrantes”! Veja-se bem! Atente-se na nomenclatura extraída do dicionário: “migrantes”. É que a falta de decência começa logo aqui, na forma como apelidamos aqueles seres humanos que fogem à guerra e às terríveis condições de vida ditadas pelo seu destino.
Mas seria bom, não, seria excelente se o problema se resumisse à mentecapta escolha da nomenclatura. O problema é muito mais grave. A história continua, continua porque eles não param de dar às costas europeias, apenas por isso, mas continua. E continua naquilo que também é costume: uma acéfala reação sentimentalista por parte das massas. Chamo-lhe de acéfala porque tal reação “viral” tão depressa surge como desaparece. Já conhecemos esta história. Chame-se-lhe “casa pia”, chame-se-lhe “gripe das aves” ou “ébola”, chame-se-lhe “tsunami” ou “terramoto”, ou chame-se-lhe isto: os “migrantes”. É o ataque de histeria típico antes do esquecimento amnésico permanente.
Todavia a acefalia da coisa também não se reduz ao acima exposto. Ninguém quer saber pívia da razão de ser destes “migrantes”. Todos fogem das causas, uns por encapotada ausência de solidariedade na espinha, outros pela covardia inerente de não terem coragem de apontar o dedo a quem de direito e a quem tem que prestar contas pelas suas responsabilidades na questão.
Quem andou a semear guerras desde o virar do século, umas atrás das outras, nenhuma das quais justificada por nada que não seja a exploração e o lucro? Confronte-se agora com os países de origem destes refugiados. Bingo!
É que isto agora é tudo muito bonito, é “dividir o mal pelas aldeias”. Agora é que temos que ser todos solidários. Estamos delapidados de toda e qualquer decência intelectual e, pior, quem comenta estas questões não tem vergonha. Falta-lhes vergonha e escondem a lacuna atirando para o ar lugares comum tão ocos quanto, por ventura, a sua moralidadezinha barata.
Uma nota para comentar aquela piada que António Costa lançou para o ar. Dizia ele que devíamos acolher massivamente os refugiados para compensar a falta de natalidade no nosso país. A piada é muito boa. Certa vez, mandaram vir imigrantes brasileiros para uma terra chamada Vila de Rei, dizendo que era para repovoar. Fizeram uma reportagem e tudo. Estava tudo muito feliz. É verdade: esses imigrantes não se quedaram por Vila de Rei nem um ano. Abalaram tão depressa quanto puderam para as grandes cidades de Portugal. Há uma quantidade de gente que pensa que os imigrantes talvez por serem eventualmente pobres ou, então, por serem simplesmente imigrantes, que também são estúpidos. O que leva os portugueses a fugirem do interior, a fugir do país, a migrar e a emigrar, é o mesmo que os leva a eles a fazerem o mesmo. Sem bons salários e boas condições de vida não há como segurar gente a este punhado de terra chamado de Portugal.
Esta piada de António Costa diz muito sobre o que ele está disposto a fazer quando tiver o poder e sobre a sua visão sobre Portugal. Diz o suficiente.