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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

“S” de surrealismo

Assistir à discussão em torno da questão grega é um exercício surreal. Assumem-se preconceitos, vomitam-se chavões, deduzem-se estados de alma, induzem-se pseudo-princípios, pseudo-ideais, pseudo-táticas, misturam-se questões de caráter com questões de política. Fala-se do que se diz ou ouviu dizer. Discutem-se suposições sobre suposições. Comparam-se dados ilusórios presentes em relatórios a que ninguém tem acesso a não ser sumários recitados a preceito. Tudo para que, no fim, se possam extrair conclusões para todos os gostos ainda que sem um pingo de consistência, coerência ou lógica.

 

O debate político está feito nisto. Os atores convidados não se equivocam nas suas linhas encomendadas à letra. O público assiste, entretido. Não lhe interessa ou sequer convém saber dos porquês com detalhe e rigor. É mais fácil assimilar os acontecimentos a duas cores e tomar o partido da maioria ou, até, não tomar partido nenhum.

publicado às 14:08

A sedução do predador

Porque é que, em regra, aqueles que sentem na pele a fina malha do coador da discriminação social, instrumento fundamental para a estratificação segundo a qual a sociedade se organiza, não somente a entendem como natural, conquanto nutrem uma vocal ambição por se colocarem do outro lado da rede, dessa mesma que, por hora, os discrimina, ao invés de, pelo contrário, terem por objetivo a justiça e a equidade?

publicado às 14:25

Mitos sobre a propriedade

O pensamento sobre o salário e o seu valor concreto vem imediatamente associado a uma ilusão inebriante. O dinheiro que se recebe não é verdadeiramente nosso. Antes, tomamo-lo emprestado. O empréstimo vence em menos de um mês em muitos casos.

 

Mais: os bens que adquirimos não são verdadeiramente nossos. Quanto muito, trata-se de um arrendamento a longo prazo. A relação é precisamente contrária: os bens é que adquirem a nossa liberdade.

publicado às 17:55

Traçando os limites para a indecência

O nosso primeiro-ministro consegue conjugar na mesma oração uma oposição ininteligível à nova postura grega face à dívida com uma tímida reivindicação das esperadas novas condições que os gregos obterão junto das instituições europeias.

 

E não existiu um jornalista que tivesse dito qualquer coisa como: “Senhor primeiro-ministro, mas isso... Repare que isso não é muito correto do ponto de vista do caráter... Estar a dizer mal dos homens, a deitar abaixo a sua luta, para depois querer usufruir das mesmas condições sem ter feito nada por isso...”

 

Todavia os jornalistas já fizeram o bastante: expuseram a aberração. Os limites para a indecência podem ser traçados desta forma: com sentidos de ética social, de caráter e até mesmo de valores e moralidade, por muito primários que possam ser. Basta que existam e subsistam em alguma cavidade oca do ser humano.

 

publicado às 14:53

A natureza do capitalismo aos olhos dos doentes hepáticos

O capitalismo é uma forma de governação económico-social extraordinariamente bem sucedida no que à implantação e à aceitação deste sistema diz respeito. Parte dessa aceitação se deve, especialmente, ao modo como o sistema é percecionado pelas massas populares. Com efeito, mais do que um sistema capaz de proceder eficazmente a uma manutenção do poder económico nas mãos dos monopolistas de uma forma limpa, transparente e aparentemente justa, mais do que isso, o sistema nutre de uma imagem tão quente e acolhedora quanto possível junto das classes mais desfavorecidas pelo próprio jogo económico.

 

Steinbeck, o escritor norte americano, dizia, curiosamente, o seguinte:

 

“Socialism never took root in America because the poor see themselves not as an exploited proletariat but as temporarily embarrassed millionaires.”

 

Traduzindo aproximadamente:

 

“O socialismo nunca formou raízes na América porque os pobres vêem-se a si próprios não como proletários explorados mas como milionários atravessando um período difícil.”

 

Acho que Steinbeck acertou no alvo em cheio, não apenas do ponto de vista da situação americana mas também relativamente ao caso geral. O capitalismo tem exatamente isto: a capacidade de encher de sonhos a todos por mais irrealizáveis e improváveis que estes possam ser. E isto, sem qualquer laivo de ironia, é maravilhoso.

 

É, contudo, nos momentos mais difíceis, naqueles momentos quando acordamos do sonho, em que vemos a verdadeira face da sereia que nos encantou, a verdadeira natureza do capitalismo.

 

Os doentes portugueses com Hepatite C estão a vê-la agora, vítimas de um sistema que não se inibe de negociar, de produzir lucros, de fazer dinheiro, com o que quer que seja, ultrapassando todos os limites do que é razoável do ponto de vista humano. Até mesmo com a saúde das pessoas. É isto o capitalismo. E por cada pessoa doente que morre por não lhe chegar um medicamento a tempo, aumentam as margens de lucro dos milionários das farmaceuticas.

 

É isto o capitalismo.

 

publicado às 11:55

Uma vénia envergonhada para a Grécia

Impõe-se uma vénia para a Grécia.

 

Ainda longe de saber como vai resultar a estratégia do novo governo grego, uma coisa é certa: agora a Grécia caminha de cabeça erguida. A Grécia comporta-se como um entre iguais na Europa. Tem a sua voz e eleva-a tão alto quanto a dos mais poderosos. E o resultado parece materializar-se claro no horizonte mais próximo: se a Grécia cedesse de imediato aos desígnios da troika teria para si condições excecionais muitíssimo mais vantajosas do que as inicialmente propostas na cartilha, apenas pelo facto de se ter feito ouvir, de não ter aceitado os ditames externos de orelhas baixas.

 

Pelo contrário, Portugal, “o bom aluno”, teve e tem as condições mais adversas de todos os que foram igualmente resgatados. Facto.

 

Por isso, e por muito mais, concretamente por 877 anos de orgulhosa história, o povo português deve, àqueles que não se submetem à abjeção da dívida, uma vénia carregada de uma grande dose de vergonha por não ter sido capaz ou não ter tido a coragem de agir de modo análogo.

publicado às 19:26

Consistência dos conceitos II

De que falamos quando nos referimos a “esquerda” ou a “direita”? Por que razão nutrimos esta divisão teórica do espectro político? Fará sentido? Existirá uma correspondência direta com a prática no mundo dos homens?

 

As sociedades humanas, especialmente aquelas com profundas tradições enraizadas numa qualquer cultura religiosa e moral de natureza monoteísta, tendem a desenvolver-se numa vertigem bipolar, observando os acontecimentos e procedendo à sua análise com uma palete de duas cores apenas. Chamam-lhe o “bem” e o “mal”, a “virtude” e o “pecado”. No sentido de contrariar esta tendência criaram-se estruturas várias que assumem e legitimam a existência de interesses diversos muito para lá da moralidade barata do número dois.

 

A génese desta forma de pensar e de entender a vida dos homens poderá radicar nas sociedades clássicas, de natureza pagã. Na Grécia Antiga, por exemplo, a multiplicidade de divindades tinha frequentemente interesses contraditórios que eram esgrimidos nas sua próprias mitologias e também nas tradições de raiz mais popular. Talvez essa perceção tenha sido determinante para a valorização que era dada à capacidade de argumentação e de dialética das camadas mais educadas das populações. Com efeito, numa sociedade com mais do que duas faces, a capacidade de elaborar argumentos, de disputar diferentes pontos de vista, era tida como fundamental para um entendimento saudável entre os membros das comunidades.

 

Estas mesmas tradições encontram-se plasmadas nos tribunais e estruturas arbitrárias das sociedades contemporâneas que, assim, bebem diretamente da fonte deixada pelos nossos antepassados clássicos. Mas as semelhanças com os Gregos ficam-se, frequentemente, por aqui. No resto, nas discussões que se travam nos diversos palcos mediáticos, persiste-se em discutir o mundo nas duas cores de que falava anteriormente. Neste capítulo, assumimo-nos como descendentes retrógrados dos nossos antepassados.

 

E a política que, não obstante o descrédito e a difamação associada à palavra, traduz a natureza mais sincera do ser humano, do ser social e, portanto, político, que cada um de nós é, por muito que o reneguemos, a política, como dizia, padece da mesma maleita de natureza daltónica.

 

Volto, então, ao princípio: de que falamos quando nos referimos a “esquerda” ou a “direita”?

 

Existe uma única diferença fundamental entre as duas filosofias subjacentes. Trata-se da forma como cada uma encara o ser humano no contexto social: a sua responsabilidade, o seu direito, o seu lugar, o seu papel, enfim, no grande plano comunitário. Trata-se, no fundo, da utilização, ou não, do prefixo des na palavra confiança no que se refere ao vizinho anónimo, o desconhecido, aquele que se apresenta completamente despido de sentimentos ao nosso olhar.

 

Esta é a única diferença. O resto são apenas ferramentas para se construir o caminho a seguir acompanhadas de uma imagética mais ou menos agradável aos sentidos. A forma como se projeta a organização económica do país e se processa a distribuição da riqueza assume, aqui, um papel determinante para corporizar a teoria política.

 

É imediato concluir que aquilo a que chamamos de “esquerda” normalmente não o é e que temos jogado o jogo segundo uma divisão artificial do campo sem correspondência com o real. Também neste particular é necessária bastante segurança sobre a utilização concreta dos conceitos, sob pena de que estes se invertam completamente em significado no espaço de menos de um quarto de século.

publicado às 10:55

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