De que falamos quando nos referimos a “esquerda” ou a “direita”? Por que razão nutrimos esta divisão teórica do espectro político? Fará sentido? Existirá uma correspondência direta com a prática no mundo dos homens?
As sociedades humanas, especialmente aquelas com profundas tradições enraizadas numa qualquer cultura religiosa e moral de natureza monoteísta, tendem a desenvolver-se numa vertigem bipolar, observando os acontecimentos e procedendo à sua análise com uma palete de duas cores apenas. Chamam-lhe o “bem” e o “mal”, a “virtude” e o “pecado”. No sentido de contrariar esta tendência criaram-se estruturas várias que assumem e legitimam a existência de interesses diversos muito para lá da moralidade barata do número dois.
A génese desta forma de pensar e de entender a vida dos homens poderá radicar nas sociedades clássicas, de natureza pagã. Na Grécia Antiga, por exemplo, a multiplicidade de divindades tinha frequentemente interesses contraditórios que eram esgrimidos nas sua próprias mitologias e também nas tradições de raiz mais popular. Talvez essa perceção tenha sido determinante para a valorização que era dada à capacidade de argumentação e de dialética das camadas mais educadas das populações. Com efeito, numa sociedade com mais do que duas faces, a capacidade de elaborar argumentos, de disputar diferentes pontos de vista, era tida como fundamental para um entendimento saudável entre os membros das comunidades.
Estas mesmas tradições encontram-se plasmadas nos tribunais e estruturas arbitrárias das sociedades contemporâneas que, assim, bebem diretamente da fonte deixada pelos nossos antepassados clássicos. Mas as semelhanças com os Gregos ficam-se, frequentemente, por aqui. No resto, nas discussões que se travam nos diversos palcos mediáticos, persiste-se em discutir o mundo nas duas cores de que falava anteriormente. Neste capítulo, assumimo-nos como descendentes retrógrados dos nossos antepassados.
E a política que, não obstante o descrédito e a difamação associada à palavra, traduz a natureza mais sincera do ser humano, do ser social e, portanto, político, que cada um de nós é, por muito que o reneguemos, a política, como dizia, padece da mesma maleita de natureza daltónica.
Volto, então, ao princípio: de que falamos quando nos referimos a “esquerda” ou a “direita”?
Existe uma única diferença fundamental entre as duas filosofias subjacentes. Trata-se da forma como cada uma encara o ser humano no contexto social: a sua responsabilidade, o seu direito, o seu lugar, o seu papel, enfim, no grande plano comunitário. Trata-se, no fundo, da utilização, ou não, do prefixo des na palavra confiança no que se refere ao vizinho anónimo, o desconhecido, aquele que se apresenta completamente despido de sentimentos ao nosso olhar.
Esta é a única diferença. O resto são apenas ferramentas para se construir o caminho a seguir acompanhadas de uma imagética mais ou menos agradável aos sentidos. A forma como se projeta a organização económica do país e se processa a distribuição da riqueza assume, aqui, um papel determinante para corporizar a teoria política.
É imediato concluir que aquilo a que chamamos de “esquerda” normalmente não o é e que temos jogado o jogo segundo uma divisão artificial do campo sem correspondência com o real. Também neste particular é necessária bastante segurança sobre a utilização concreta dos conceitos, sob pena de que estes se invertam completamente em significado no espaço de menos de um quarto de século.