Assistir à discussão em torno da questão grega é um exercício surreal. Assumem-se preconceitos, vomitam-se chavões, deduzem-se estados de alma, induzem-se pseudo-princípios, pseudo-ideais, pseudo-táticas, misturam-se questões de caráter com questões de política. Fala-se do que se diz ou ouviu dizer. Discutem-se suposições sobre suposições. Comparam-se dados ilusórios presentes em relatórios a que ninguém tem acesso a não ser sumários recitados a preceito. Tudo para que, no fim, se possam extrair conclusões para todos os gostos ainda que sem um pingo de consistência, coerência ou lógica.
O debate político está feito nisto. Os atores convidados não se equivocam nas suas linhas encomendadas à letra. O público assiste, entretido. Não lhe interessa ou sequer convém saber dos porquês com detalhe e rigor. É mais fácil assimilar os acontecimentos a duas cores e tomar o partido da maioria ou, até, não tomar partido nenhum.
Porque é que, em regra, aqueles que sentem na pele a fina malha do coador da discriminação social, instrumento fundamental para a estratificação segundo a qual a sociedade se organiza, não somente a entendem como natural, conquanto nutrem uma vocal ambição por se colocarem do outro lado da rede, dessa mesma que, por hora, os discrimina, ao invés de, pelo contrário, terem por objetivo a justiça e a equidade?
O pensamento sobre o salário e o seu valor concreto vem imediatamente associado a uma ilusão inebriante. O dinheiro que se recebe não é verdadeiramente nosso. Antes, tomamo-lo emprestado. O empréstimo vence em menos de um mês em muitos casos.
Mais: os bens que adquirimos não são verdadeiramente nossos. Quanto muito, trata-se de um arrendamento a longo prazo. A relação é precisamente contrária: os bens é que adquirem a nossa liberdade.
“Ele ainda é peixe, e vi-lhe o anzol no canto da boca e ele tem andado de boca bem fechada. O castigo do anzol não é nada. Mas o da fome, e o de sentir-se contra o que não entende, isso é tudo.”
O nosso primeiro-ministro consegue conjugar na mesma oração uma oposição ininteligível à nova postura grega face à dívida com uma tímida reivindicação das esperadas novas condições que os gregos obterão junto das instituições europeias.
E não existiu um jornalista que tivesse dito qualquer coisa como: “Senhor primeiro-ministro, mas isso... Repare que isso não é muito correto do ponto de vista do caráter... Estar a dizer mal dos homens, a deitar abaixo a sua luta, para depois querer usufruir das mesmas condições sem ter feito nada por isso...”
Todavia os jornalistas já fizeram o bastante: expuseram a aberração. Os limites para a indecência podem ser traçados desta forma: com sentidos de ética social, de caráter e até mesmo de valores e moralidade, por muito primários que possam ser. Basta que existam e subsistam em alguma cavidade oca do ser humano.
O capitalismo é uma forma de governação económico-social extraordinariamente bem sucedida no que à implantação e à aceitação deste sistema diz respeito. Parte dessa aceitação se deve, especialmente, ao modo como o sistema é percecionado pelas massas populares. Com efeito, mais do que um sistema capaz de proceder eficazmente a uma manutenção do poder económico nas mãos dos monopolistas de uma forma limpa, transparente e aparentemente justa, mais do que isso, o sistema nutre de uma imagem tão quente e acolhedora quanto possível junto das classes mais desfavorecidas pelo próprio jogo económico.
Steinbeck, o escritor norte americano, dizia, curiosamente, o seguinte:
“Socialism never took root in America because the poor see themselves not as an exploited proletariat but as temporarily embarrassed millionaires.”
Traduzindo aproximadamente:
“O socialismo nunca formou raízes na América porque os pobres vêem-se a si próprios não como proletários explorados mas como milionários atravessando um período difícil.”
Acho que Steinbeck acertou no alvo em cheio, não apenas do ponto de vista da situação americana mas também relativamente ao caso geral. O capitalismo tem exatamente isto: a capacidade de encher de sonhos a todos por mais irrealizáveis e improváveis que estes possam ser. E isto, sem qualquer laivo de ironia, é maravilhoso.
É, contudo, nos momentos mais difíceis, naqueles momentos quando acordamos do sonho, em que vemos a verdadeira face da sereia que nos encantou, a verdadeira natureza do capitalismo.
Os doentes portugueses com Hepatite C estão a vê-la agora, vítimas de um sistema que não se inibe de negociar, de produzir lucros, de fazer dinheiro, com o que quer que seja, ultrapassando todos os limites do que é razoável do ponto de vista humano. Até mesmo com a saúde das pessoas. É isto o capitalismo. E por cada pessoa doente que morre por não lhe chegar um medicamento a tempo, aumentam as margens de lucro dos milionários das farmaceuticas.
É isto o capitalismo.
publicado às 11:55
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