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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Dois meses mais até à eternidade

Dois meses mais como se de uma unidade de distância e não de tempo se tratasse. São mais dois meses aqueles que um cidadão deve trabalhar para ter acesso à sua reforma, num incremento sem fim, sem que de antemão soubéssemos que a idade da reforma sofre de igual modo a influência da inflação assim como o preço da massa ou do arroz.

 

Dizem que vivemos muito mais tempo. Por aqui, confesso que os velhos vão morrendo na mesma. Morrem das mesmas doenças e maleitas. São as mesmas que existiam antes do dobrar do milénio, só que agora têm nomes próprios, só seus, quando anteriormente eram confortavelmente acomodadas naquela categoria que a todas abraça: as “doenças da velhice”. Agora têm nomes próprios, conhecemo-las pelos nomes e os médicos perderam a dúvida no olhar no momento do diagnóstico. Chamam-nas pelos nomes de forma categórica. Depois levam os velhos para os edifícios novos e gigantes que hoje existem e submetem-nos a uma série de experiências. São experiências que envolvem químicos luminosos e raios invisíveis mas que queimam a pele. Dizem que são tratamentos que atrasam o chegar da morte. Por vezes abrem-nos. Abrem-nos e fecham-nos. Aos velhos. Quando a coisa perde o interesse, libertam-nos. Deixam-nos vir morrer a suas casas. Chamam-lhe tempo de sobrevida.

 

Ao ouvir as notícias sobre a segurança social fico feliz. Por momentos sinto que sou eterno. Que superarei um século e não ficarei por aí. Depois, olho em volta. E vejo os velhos a morrer do mesmo modo e à mesma velocidade com que morriam pouco depois de a segurança social ter sido criada. Morrem na mesma, só que agora sabem o nome daquilo que os mata.

publicado às 12:23

A Ilha Desconhecida

“(...) Então o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar a proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.”

— José Saramago, O Conto da Ilha Desconhecida

publicado às 11:10

Quadra de moralidade

Quando era mais novo, muito novo, quando não fazia ideia sequer das consequências dos atos, nem ponderava sobre as causas dos mesmos, quando pensava que todo o universo se movia em torno do meu ego, houve uma lista de valores, de princípios, que me foram impingidos, sem uma qualquer ordem natural. Eram valores que se considerava importantes e estruturantes daquilo que eu poderia ser e que, sob uma certa perspetiva de desenvolvimento, germinaram naquilo que hoje constitui o meu quadro moral.

 

Detesto a palavra moralidade. Detesto-a por estar tão umbilicalmente relacionada com as forças mais retrógradas das sociedades humanas e porque, ultimamente, serve sempre de pretexto para os poderosos enraizarem e perpetuarem o seu jugo sobre os mais fracos.

 

Por isso, esta moralidade de que falo nada tem que ver com aquela que se aprende nas catequeses. São os valores dos homens que existiam muito antes das religiões e dos deuses nascerem. São os princípios dos homens que trabalham e que juntos sobrevivem o dia-a-dia e que amam e se respeitam como irmãos e não como concorrentes. Em última análise, foi essa particularidade das sociedades primitivas humanas que permitiu ao Homem deixar os demais animais para trás na escada evolutiva.

 

Neste contexto e no contexto da presente quadra natalícia, independentemente do seu significado religioso, queria apontar o seguinte. Um dos valores que me foi transmitido foi que aquele que ajuda não se deve regozijar por isso. Ninguém deve saber. Não deve tomar crédito da ajuda que deu, nem tão pouco adquirir qualquer tipo de vantagem pelo que fez, pois não é por isso que o deve fazer. E contudo...

 

Hoje não há uma grande superfície, não há um tentáculo capitalista, que não tenha a sua pequena ação caridosa ou campanha solidária, às vezes até mais do que uma, ao sabor do bom espírito natalício. Não existe um que seja. Nunca vi tal igual. E anunciam-no aos sete ventos! Anunciam-no para que acorramos a comprar nos seus estabelecimentos transbordando de piedade ou do que quer que seja.

 

Ninguém impede que essas lojas e lojinhas façam os seus donativos que, aliás, devem fazer, mas usar a solidariedade como slogan publicitário é demasiado baixo. Tão baixo que me surpreende que aceitemos isto como natural. Surpreende-me que se permita isto. Estará o Homem do século XXI tão afastado assim do seu antepassado ancestral? Por ventura, tratar-se-á de um tipo contemporâneo de moralidade oportunamente disseminado nesta quadra.

publicado às 19:21

Uma versão do equilíbrio económico de Nash

“It was supposed that the pearl buyers were individuals acting alone, bidding against one another for the pearls the fishermen brought in. And once it had been so. But this was a wasteful method, for often, in the excitement of bidding for a fine pearl, too great a price had been paid to the fisherman. This was extravagant and not to be countenanced. Now there was only one pearl buyer with many hands, and the men who sat in their offices and waited for Kino knew what price they would offer, how high they would bid, and what method each one would use.”

— John Steinbeck, The Pearl

 

publicado às 11:47

“A greve é um direito inalienável, mas...”

Não procurem mais. Não é preciso. Frases como esta dizem tudo. Lembro-me de outras como: a democracia é muito bonita, mas “não sei se, a certa altura, não é bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e depois, então, venha a democracia.”

 

O problema está justamente no “mas”. O “mas” muda tudo, põe tudo o que o precede em causa, inverte-o, por vezes, retira-lhe a substância. Ao mesmo tempo mostra a verdadeira natureza da substância de que são feitas as pessoas que dizem tais frases, daquilo que verdadeiramente acreditam. E não acreditam nem em greves, nem em direitos sindicais, nem em democracia.

 

Aproximem-se, senhoras e senhores! Aqui está plasmada a natureza de quem nos governa!

publicado às 11:46

Tipos de escrita

O universo da escrita pode ser dividido em três tipos essenciais.

 

Em primeiro lugar temos os escritores que escrevem sobre o que experimentam, o que sentem e o que vivem e relatam-no tão fielmente como quanto acreditam possível. Para estes o importante é isso mesmo: traçar um retrato da sociedade e da natureza tão fiel quanto a sua capacidade artística permite.

 

Em segundo lugar existem aqueles que se centram sobre o seu universo imaginário e escrevem, assim, não sobre a realidade em si, mas sobre uma realidade possível, sobre uma existência especulativa. A estes segundos se devem as ilusões e os impossíveis, as utopias, os ideais e os sonhos.

 

Em último lugar e, por mera intenção de exaustividade, temos os escritores que escrevem sobre o que ouvem dizer, sobre o que leem nos jornais, ouvem na rádio ou na televisão, não se podendo intersetar necessariamente nem com o primeiro grupo nem com o segundo, pois na verdade, nada do que dizem será inteiramente seu.

 

O terceiro grupo constitui-se objetivamente como um “verbo de encher”, um eco de outras vozes, destinado a perder-se como murmúrio inaudível, por vezes, não tão rapidamente quanto o desejável.

 

É minha convicção que é de uma conjugação harmoniosa do primeiro grupo com o segundo que surge a grande obra na presença da qual o público encontra genuína e autêntica identificação e, ainda, ter nela uma lanterna, um farol, para iluminar o futuro e aquecê-lo numa manta de retalhos que são sonhos de muitas e diferentes cores. Sonhos tão essenciais para quebrar paradigmas, construir novos e, enfim, fazer com que o Homem se erga e caminhe em frente.

publicado às 14:29

O Natal como um reflexo

O Natal diz tanto sobre o que somos, tanto sobre o que pensamos, tanto sobre a nossa natureza... O Natal é uma quadra em que queremos acreditar que somos melhores do que o que somos; em que queremos acreditar que nos importamos com os que nos rodeiam, a família e os outros. Queremos mostrar que valorizamos aquilo que realmente parece nobre e importante.

 

Em muitos casos juntam-se à mesa pessoas que se ignoram durante o resto do ano. Dizem-se, ouvem-se, cantam-se versos que são frases que nos parecem ridículas se desenquadradas noutra estação do ano. E multiplicam-se as campanhas de caridade disfarçada de solidariedade por toda a parte, por toda a razão sensibilizante até às lágrimas do maior cínico. Quando, ao longo do ano, essas razões perdem toda a relevância que pareciam ter subjugando-se, com naturalidade, às leis de competição que presidem à sobrevivência do Homem.

 

Assim é. Aliás, assim tem sido.

 

O Natal apresenta-se, assim, como um par de semanas que funcionam como um oportuno escape a uma rotina cristalizada como normal e óbvia no resto do ano. As pessoas precisam disto. Lavam o caráter, esfregam os calos e as cicatrizes acumuladas ao longo do ano e preparam-se, de alma esfoliada, para outro ano de hábitos iguais.

 

O Natal é o reflexo óbvio da sociedade em que vivemos, das nossas convicções, das nossas opções. Se a sociedade fosse outra, o Natal poderia ser um dia qualquer, um dia como outro qualquer. Ou então, um valorado símbolo, e não oco, de um conjunto de valores que se considerassem importantes e estruturantes.

publicado às 20:22

O artista e a sociedade

A era moderna trouxe na algibeira uma explosão cultural. Essa explosão teve uma forte carga revolucionária: nunca se escreveu tanto, nunca se produziu tanta música, nunca se fizeram tantos filmes, nunca como agora. Contudo, existe uma parte, com precisamente igual peso, que é puro fogo de artifício: fogo para iluminar a vista e distrair o olhar.

 

No sentido de contrariar o potencial transformador desta realidade os órgãos de poder que presidem aos destinos do Homem encontraram uma forma simples e genial: a propaganda e a mediatização de preferências. Estes instrumentos permitem orientar os “gostos” das massas de forma tão eficaz como se de um pastor e seu rebanho se tratasse.

 

Este processo conduziu a uma mutação da forma como se encara hoje o artista. O artista do vigésimo século, aquele que havia chamado a si o papel reflexivo e transformador da realidade que então o rodeava, não existe mais. Nos dias que correm a perceção dominante é a de um homem comum, não necessariamente particularmente dotado, que, abençoado pelo acaso, produz uma obra capaz de entreter.

 

Entreter. O entretenimento é, aqui, a palavra-chave. O artista deve produzir histórias que entretenham, imagens ou sons que regalem os sentidos. Não são bem vistos aqueles que tomam partido por algo que não seja tão trivial como matar a fome ou a sede.

 

Assim, nos dias de hoje, a obra de arte deve ser algo tão inerte como um gás nobre. Deve-nos entreter com algum assunto pseudo-fraturante, tão tenuemente aprofundado quanto possível, que nos permita a emissão de opinião fácil e, em simultâneo, que assim perdure na memória enquanto cliché mas que, enquanto substância, seja objeto de esquecimento imediato.

 

No final de contas, a era moderna produzirá menos grandes artistas do que aquela explosão cultural de que falava faria supor, não porque eles não existam, os verdadeiros, aqueles que colocam em causa os axiomas e os paradigmas desta sociedade, mas porque se encontram tão abafados e escondidos, sob quilos de camadas dos outros artistas que hoje se produzem, que a sua descoberta, daqui por duzentos anos, constituirá uma tarefa de acrescida dificuldade.

publicado às 16:25

Humanidade

“A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e parece como um tributo indiferenciado do planeta. Parece como uma coisa qualquer.”

— Valter Hugo Mãe, A Desumanização

publicado às 20:34

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