O que seria...
“(...) que seria de nós se não sonhássemos.”
―José Saramago, Memorial do Convento
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“(...) que seria de nós se não sonhássemos.”
―José Saramago, Memorial do Convento
Portugal encontra-se em estado de sítio onde impera a lei marcial. É já claro que o estado se vê incapaz de providenciar os serviços mais básicos e essenciais ao funcionamento da sociedade, sendo os mais visíveis a justiça e a educação, não constituindo casos únicos. Com efeito, a desorganização estende-se transversalmente a todos os outros setores, incluindo a saúde, a organização do trabalho e do sistema de apoio social. Os dois primeiros são, sem prejuízo para os demais, as capas de cartaz desta lamentável peça governativa de não menos lamentáveis intervenientes. Relativamente ao primeiro, a justiça, devemo-nos contentar por ela se encontrar vendada, incapaz de ver, por exemplo, aquele decreto-lei que suspende todos os prazos processuais, assim como o funcionamento das estruturas da justiça em tristes caixotes ou até o transporte de materiais processuais em condições surreais. Fala-se no comprometimento de imensos processos. Já no caso da educação não existe memória efetiva de um ano de tanta falta de competência e de vergonha no processo de colocação de professores. Passa-se um mês após o início do ano letivo e é esmagadora, e arrebatadora até, a quantidade de escolas que não funcionam em pleno, de alunos sem aulas e sem acompanhamento.
Tirado o negro e vil retrato do estado a que o país chegou seria importante perceber o fenómeno não como um acidente de percurso, como alguns querem fazer passar, ou como um problema de competência dos ministros em causa, como muitos mais pretendem pintar, mas como um um checkpoint, ou ponto de controlo, que opaís está a atravessar, no caminho para a meta final pretendida. De facto, esta situação é uma consequência das políticas traçadas, do desinvestimento contínuo e sustentado, ano após ano, atravessando todos os setores. É uma consequência e uma estratégia, um passo determinante na desvalorização dos serviços de justiça e de educação, e machadada efetiva na descredibilização do estado enquanto prestador de serviços, passando a imagem de ser uma entidade incapaz de gerir o que quer que seja. Esse é o objetivo intermédio fundamental para, então, desimpedir o caminho para aquela meta que está e esteve presente desde o princípio: a privatização generalizada de todos os setores, leia-se, a venda de garagem do próprio estado em peças soltas.
Nota: Não se confunda o desinvestimento operado com poupança. Uma coisa não corresponde à outra. O que se tem passado é o transporte de verbas dos serviços públicos para outras alocações.
A conversa, diálogo, como permuta de ideias, é seguramente o maior factor de evolução do ser humano. Não teríamos chegado tão longe simplesmente pela nossa inteligência individual. Cada ser humano isolado na sua ilha privada teria, seguramente, atingido muito rapidamente o cru destino da extinção. E reforço: não se trata apenas de cooperação ao nível mecânico, mas sobretudo no que ao intelectual diz respeito. No entanto, requisito obrigatório para esta conversa evolutiva é haver um acordo, não tácito mas manifesto, sobre do que é que se está a discutir. Acordar sobre as definições, sobre a axiomática de que se faz uso. Isto é, se falamos sobre azeitonas, a palavra azeitona deve representar para todas as partes exatamente o mesmo, para não se correr o risco de se estar a discutir sobre frutos distintos. Outro requisito fundamental é saber do que se fala. Se se discute a “apanha” da azeitona deve-se conhecer o bago em questão e a milenar árvore que o origina. Caso contrário, podemos incorrer no erro de comparar a azeitona à uva e, como nas vindimas, defender a recolha de cada azeitona uma a uma como se procede com cada cacho de uvas. São erros próprios de quem ignora que a safra da azeitona se processa através do varejar dos ramos da oliveira sendo estas recolhidas, então, em extensos lençóis chamados de panais.
As trocas de ideias que não satisfazem os dois requisitos supra invocados podem ser úteis a nível privado, admito, sobretudo se houver um genuíno interesse de aprendizagem das partes. A nível público, contudo, constituem discussões absolutamente desnecessárias. Não obstante, radicam-se como prática comum nos meios de informação, já são uma forma eficaz de desinformar, confundir e dividir a opinião pública.
“Mas acima de tudo, se queremos estar na vida em perfeita coordenação com ela, temos de saber que nada na Natureza é justo ou injusto. Que nada tem significado. (...) O homem de amanhã será um homem natural, limpo de todas as ilusões e tranquilo.”
— Vergílio Ferreira, Na Tua Face
O que é a liberdade? O que caracteriza alguém “livre”? Como definimos o conceito? Não me interessa, neste ponto, admitindo com naturalidade ser algo de “desejável”, qual o caminho para atingirmos a liberdade. Não me interessa o formalismo. Antes importa sabermos do que estamos a falar para, então, formularmos uma estratégia.
No dicionário da priberam vem a definição que se segue.
“Liberdade, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013:
O ponto 1 define, de forma condicional, o conceito. O condicionalismo relativo à liberdade dos outros é absorvente pois induz que o conceito se desenvolve num contexto de um equilíbrio de um grande número de partes, como se a liberdade fosse aquele momento em que uma balança de inúmeros pratos se encontra, enfim, em equilíbrio. Note-se que o condicionalismo é tão poderoso que podemos, em tese, estar a definir um conceito impraticável. Não obstante, permanece aquela noção inicial euclidiana indicadora do que será a liberdade: o “direito de proceder conforme nos pareça”.
Enquanto que o ponto 2 é uma mera imposição linguística, o ponto 3 já apresenta duas ideias assaz curiosas. Liberdade como “conjunto de ideias liberais ou de direitos garantidos ao cidadão”. Em primeiro lugar a que “ideias liberais” nos referimos? Refere-se o texto, claramente, ao conceito primitivo do século XIX e não ao contemporâneo, até mesmo pela referência que se lhe segue aos “direitos garantidos”, incompatível com o segundo. Esta é a referência mais curiosa de todas. Efetivamente, conduz-nos a entender o direito da liberdade como subordinado à existência de outros direitos. Que direitos serão esses, afinal? O “direito de proceder conforme nos pareça” é, ultimamente, a possibilidade de efetuar uma escolha não em quaisquer condições mas dentro de um conjunto maximal de escolhas possíveis. Como é possível fazê-lo? Poderá um de nós efetuar essa escolha num contexto qualquer?
Recordo aqui parte da letra da música “Liberdade” celebrizada por Sérgio Godinho e recentemente recuperada pelo próprio:
“Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão
habitação
saúde, educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir”.
Poderá um temente pela vida, um faminto, sem abrigo, enfermo ou ignorante, ser verdadeiramente livre? Quero dizer: poderá ser capaz de escolher de acordo com a sua vontade e ter ao seu dispor todo o universo de opções potenciais? “A paz, o pão, habitação, saúde, educação,...” são estes, com segurança, os direitos pressupostos no ponto 3 da definição, pois sem eles o conjunto das opções de que falava quando se exerce a escolha, isto é, o direito chamado de liberdade, vê-se reduzido de forma drástica.
Os pontos 4 a 8 referem-se à liberdade enquanto adjetivo de personalidade estando relacionados, obviamente, com o que foi dito anteriormente.
Mas chegados aqui, parece que o conceito ficou muito bem definido. Parece que domesticamos o substantivo e que podemos, seja essa a nossa vontade, construir tal sociedade livre desde que nos asseguremos dos alicerces descritos anteriormente. Mas será que podemos? Frequentemente questiono-me...
Existem modelos sociais que não contemplam qualquer das garantias referidas, onde são claras as diferenças sociais atingindo proporções dramáticas onde cinco pontos percentuais da população detém noventa e cinco pontos percentuais da riqueza global gerada e, contudo, são modelos tidos como exemplares com perceções populares muito favoráveis no que à liberdade diz respeito. Pelo contrário, também existem experiências simétricas, isto é, de modelos sociais “garantidistas” e, frequentemente, estes são acusados quer no plano interno quer no externo de não serem promotores de liberdade. Perante isto, o que pensar? Não será o concreto da palavra liberdade puramente ilusório? Contrariamente a tudo o que se discutiu, não será a liberdade um conceito puramente abstrato? Poderá existir liberdade e não se sentir a liberdade? E o contrário? E o que será mais importante: a liberdade em concreto ou a perceção que dela temos? Até mesmo aqui serão as palavras de Descartes absolutamente premonitórias? Isto é, no que diz respeito também à liberdade, é o essencial invisível aos olhos? Chegados a este ponto e, sendo a liberdade nada mais do que o poder da escolha, termino este breve ensaio com as palavras do Merovingian, personagem da trilogia The Matrix, as quais subscrevo, sobre a escolha, ou seja, sobre a liberdade.
“Choice is an illusion, created between those with power, and those without”
— The Merovingian, in Matrix Reloaded.
Nota final: as três derradeiras linhas da letra da música cantada por Sérgio Godinho merecem uma reflexão própria a fazer daqui por uns tempos.
“Some men see things as they are and say why — I dream things that never were and say why not.”
— George Bernard Shaw
Comemora-se hoje o dia da capitulação final do regime monárquico e da implantação da república no nosso país. Trata-se de um dia de substancial importância na medida em que, formalmente, Portugal deixou de ser liderado por uma casta de indivíduos nascidos para o efeito para passar a ser liderado por cidadãos escolhidos de forma não arbitrária (democrática).
Que esses cidadãos, escolhidos para liderar no regime republicano, também têm pertencido invariavelmente a uma certa casta, nomeadamente à do poder económico, é outra conversa. Que a república se tenha tornado rapidamente mais dispendiosa que as mais faustosas monarquias europeias, outra história é. Trata-se, ultimamente, da consequência das escolhas coletivas da população e não de uma qualquer fatalidade ou inevitabilidade.
Importa salientar o formalismo da coisa em si. Por muito modernizada que a monarquia se tenha tornado, por muitos adjetivos que compre (parlamentar, constitucional...), por muito que se tenha adaptado às idiossincrasias, às burocracias e aos palcos mediáticos da era contemporânea europeia, a monarquia não deixa nunca de ser exatamente o que é. E o que é, quando analisamos a sua estrutura de base, é degradante, para dizer o mínimo, na perspetiva do cidadão que a ela se submete. A monarquia é o espaço natural das classes sociais e económicas, de tal forma evidente, que elas se estabelecem logo na génese do indivíduo. E por isso, ainda que se possa encontrar exemplos com vantagem da monarquia sobre a república, exemplos de práticas de igualdade e de justiça efetivas, o formalismo da monarquia é inexorável e, portanto, inaceitável. Já o da república traduz-se numa estrutura de base de igualdade e de justiça. O que os povos dela fazem, nomeadamente no que diz respeito à organização económica que preferem, não deve ser aqui abordado.
“It has always seemed strange to me...The things we admire in men, kindness and generosity, openness, honesty, understanding and feeling, are the concomitants of failure in our system. And those traits we detest, sharpness, greed, acquisitiveness, meanness, egotism and self-interest, are the traits of success. And while men admire the quality of the first they love the produce of the second.”
― John Steinbeck, Caravana de Destinos
Amato, filho de Héracles (Hércules), o semideus; neto de Zeus, deus dos deuses; trineto de Perseu, o carrasco de Medusa; escolheu estas terras para aportar e sediar uma cidade com o seu o nome.
Escolheu bem.
O surgimento do sistema social europeu, chamemos-lhe assim, é mais complexo do que aquela ideia normalmente veiculada de uma geração mais ou menos espontânea. Um conjunto de líderes europeus, na ressaca dos regimes de índole fascista finados com o epílogo da segunda grande guerra, arquitetaram um sistema de garantias sociais que fosse capaz, por si, de manter sob controlo as camadas mais desfavorecidas da população e evitasse, assim, a repetição da história. Esta narrativa, até certo ponto verdadeira, carece de autenticidade e, até mesmo, de genuinidade.
Em boa verdade, o tal sistema social é pensado em claro contraponto ao regime social que dava plenos passos, então, nas sociedades socialistas de leste europeu. É que, naquela altura, uma parte substancial do povo ouvia as notícias dos viajantes que chegavam, dos marinheiros que aportavam dos barcos vindos do oriente europeu e, ainda que contra as pregações conservadoras locais, imaginavam sociedades onde todas as necessidades básicas eram garantidas. Ouviam e imaginavam: educação, pão, saúde, habitação, cultura. Tudo isto, num contexto de ausência total ou parcial de satisfação destas necessidades. E é neste sentido, e não noutro, que o estado social europeu foi erguido, não tanto para combater o regresso dos regimes fascistas mas sobretudo para combater a ascensão, naquela altura galopante, do comunismo na Europa. Seguramente que não encontramos qualquer coincidência entre as datas do fim do bloco de leste e do início imediato do desmantelamento do estado social europeu consubstanciado nas políticas de austeridade, crise após crise, e na destruição das suas estruturas de financiamento.
Importa, neste ponto, chamar a atenção para um pormenor fundamental da engenharia do sistema social europeu: a solidariedade. Com efeito, este é um sistema solidário e que, tendo em consideração, ainda que de forma implícita, o conceito de luta de classes, mobilizava o capital das classes dominantes para sustentar as necessidades das classes mais desfavorecidas, nomeadamente as trabalhadoras. O estado social europeu assumia-se, assim, como uma forma ativa de redistribuição da riqueza e de equilíbrio económico.
E é neste contexto que tem que ser analisado e entendido o recente acordo pelo aumento do salário mínimo nacional. O aumento nominal, em si próprio, peca apenas por ser escasso. O valor do salário mínimo deveria ser aquele que, na justa quantidade, permitisse a um cidadão viver dignamente, no âmbito dos seus diversos domínios, na sociedade em que se insere. Mas este aumento não só é insuficiente neste contexto como se apresenta como uma clara subversão do conceito. Efetivamente, a troco deste pequeno aumento o estado concede às classes acumuladoras de capital uma substancial redução na taxa social única, leia-se uma diminuição efetiva das contribuições solidárias para o sistema por parte das classes patronais. Isto quer dizer que este aumento já não se traduz numa mobilização de capital interclasses, no sentido do equilíbrio e da justiça económica e social, mas antes o contrário com o sistema social a passar a ser cada vez mais sustentado pelos próprios destinatários ficando estes com rendimentos cada vez mais reduzidos e pondo em causa a sustentabilidade do próprio sistema.
Desde sempre que as classes dominantes se opuseram a qualquer aumento do salário mínimo. Desde sempre e pelas razões óbvias de manutenção do poder. Não deixa de ser irónico que essas mesmas classes encontraram num aumento simbólico do salário mínimo todo o dinamite necessário para implodir o sistema social solidário português.
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