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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

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Um estado de coma cerebral coletivo

Não sei onde é que este mundo vai parar. À partida, as expectativas não são boas.

 

O povo, o proletariado, as massas que trabalham, que produzem, que colocam o planeta a girar, que transformam mundos e são capazes de os colocar de pernas para o ar, estão cada vez mais mergulhados num estado de coma cerebral, agarrados ao smartphone e ao tablet em cada minuto de liberdade de que dispõem. Esta febre de novas tecnologias tem contribuído sobretudo para este estado de coisas: o ser humano médio já não sabe o que é pensar pela própria cabeça. Pelo contrário, deixa que o smartphone pense por si e que o seu tablet lhe injete nas veias as sensações que é suposto que sinta, disfarçadas de app ou jogo infatilo-idiota.

 

Com este relato que faço do estado de coisas não olvido que o problema retratado não seja verdadeiramente novo. O que temos assistido, todavia, é a uma grande sofisticação deste processo de adormecimento das massas neste estado de coma cerebral coletivo.

 

A História não deixa nunca de me surpreender. O que as ditaduras não conseguiram lograr em amordaçamento dos povos, a democracia conseguiu. Quem diria que era dando a corda da liberdade aos povos, que seriam eles próprios a dar os nós de forca sobre os seus próprios pescoços? O que as inquisições e o fanatismo religioso não conseguiram fazer em termos de obscurantismo científico e do saber, nem fogueiras de cientistas, nem queimadas de bibliotecas, as novas tecnologias contemporâneas conseguiram-no. Hoje, os jovens deixam voluntariamente os livros, nem lhes pegam, para se agarrarem a joguinhos de autossatisfação pueril. Quem diria? Vivemos uma nova idade das trevas, mais profunda e mais poderosa, e nem damos conta disso.

 

Paralelamente, como pode um povo, em pleno século XXI, delirar com os feitos de um mero jogador de futebol?

 

Como pode?!

 

É verdadeiramente inacreditável! É inacreditável para mim mesmo quando coloco a coisa no papel! É inacreditável ler e reler estas mesmas palavras que acabo de escrever! Mas é bom que encaremos o problema de frente: as massas deliram com os feitos de um jogador de futebol! Não deliram com um cientista, com um escritor, com um professor ou com um sábio. Tão pouco deliram com um jogador de xadrez que ainda seria algo digno de admiração. Deliram com alguém que dá pontapés numa bola!

 

Estamos a moldar um povo inteiro à imagem de um mero jogador de futebol que só tem isso mesmo para dizer dele próprio: é jogador de futebol. De resto, trata-se de um homem de reduzida instrução, de parca cultura geral e que mal consegue articular duas palavras numa entrevista informal. É este o modelo de homem e de pessoa para a esmagadora maioria dos jovens de Portugal, já para não falar da Europa e do mundo.

 

Tomem atenção a esta realidade. Se Cristiano Ronaldo coloca dois brincos na orelha direita, os jovens imitam-no. Se faz um desenho no penteado, o mesmo sucede. A juventude não sabe falar? Não há problema, se fala como o Cristiano Ronaldo, então está tudo bem. Não é bom a Matemática? Sem stress, o Cristiano Ronaldo também não e é riquíssimo e famoso.

 

Cristiano Ronaldo tornou-se na norma, na lamentável norma pela qual aferimos a nossa qualidade pessoal. E o mais grave é que a sociedade aceita de forma cega e surda todas as opções pessoais dos seu modelo. Ai, Bandura, Bandura... quão verdadeira e quão perigosa é a tua teoria de aprendizagem social... Por exemplo, considero moralmente chocante que Cristiano Ronaldo ande a encomendar filhos por catálogo, leia-se por barriga de aluguer — já lá vão três! —, mas não vejo ninguém incomodado com a moralidade da coisa. Não é que ele não possa fazer o que quer, nem que não tenha a liberdade para o fazer. Antes, é esta aceitação acéfala de tudo o que faz e a adoção da sua pessoa como modelo transversal. Porque Cristiano Ronaldo é quem é, de alguma forma nem as leis, nem qualquer conceito de moralidade se lhe aplicam. Erguem-lhe estátuas! Ele é Cristiano Ronaldo, ele faz o que quer porque já ganhou cinco bolas de ouro. E agora, nesta quadra, até substitui o Pai Natal nos anúncios da televisão, ao que parece. É extraordinário e ridículo. O problema não é ele, bem entendido, somos nós! Ele é apenas um jogador de futebol. Nós é que fazemos dele mais do que o pouco que ele é.

 

É um caminho perigoso este que estamos a trilhar. Quando dermos por isso, não sobrará muito do que julgávamos adquirido, nem princípios, nem valores, nem cultura e nos quedaremos com um povo ignorante, incapaz, por mais cursos superiores que lhe atribuam, agarrado a smartphones e tablets, a adorar falos ídolos e sem consciência nem de si, nem do que os rodeia, num estado de coma cerebral coletivo.

 

Duvido que as pessoas do século X achassem que viviam na idade das trevas. Se lhes dissessem isso, desdenhariam. Cinco séculos depois, Petrarca caracterizou desse modo esses tempos. Nós também não temos consciência dos tempos em que vivemos.

publicado às 22:44

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