Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

A sociedade do duplo critério

Num ápice o foco mediático deslocou-se por inteiro do conflito Rússia-Ucrânia, para o conflito Israel-Palestina. Creio que, a ocidente, terá sido muito oportuna esta sucessão dos eventos: foi o pé de que precisavam para abandonar de vez (?) as ambições de guerra do insensato ucraniano. Nunca deixará de me surpreender, todavia, é a mudança de critério que acompanhou a mudança do foco:  o que se dizia a propósito do primeiro conflito, não se diz a propósito do segundo conflito ou, pior, diz-se exatamente ao contrário. Arrepia-me viver numa sociedade de dois pesos e de duas medidas. Arrepia-me que umas vidas sejam mais importantes que outras. A este respeito, também o tratamento mediático é o oposto, a imagética, o argumentário aplicado inverteu-se, a conceptologia substituiu-se, já não há invasores nem invadidos, já não há agressores nem agredidos, os terroristas são os outros, são sempre os outros. Terrorista é aquele conceito que se aplica a quem convém e que se subleva a qualquer critério. É como o bárbaro na boca dos romanos. É o inimigo. Elogie-se ainda o discurso de António Guterres por se limitar a dizer o óbvio e deixar, por breves momentos, de ser o serventuário do tio Sam. E veja-se como, para Israel, quem ousa criticá-la é imediatamente enxovalhado de antissemita para baixo. É um tipo de atitude que corta pela raiz qualquer tipo de diplomacia, de diálogo ou de entendimento. Não será por acaso que o problema do médio-oriente não se resolve. Nada se pode resolver na sociedade do duplo critério.

publicado às 17:54

A guerra e a greve

Não escrevi praticamente nada sobre a guerra na Ucrânia desde o início do conflito. O tema é complexo, estupidamente bipolarizado e, para mim, comum mortal, sinto que, desde o princípio, me faltavam bases sólidas para poder opinar. Entre um ocidente que chama a Rússia de comunista e uma Rússia capitalista com outros interesses para além da sua segurança, desde cedo me pareceu avisado simplesmente abster-me e não participar na insanidade.

Vou registar apenas aqui um momento que se deu esta semana e começa a anunciar uma viragem interpretativa e uma adaptação conveniente das narrativas a ocidente, no que ao conflito diz respeito. Quando este conflito acabar, ainda vamos ver, quer-me parecer, muitos comentadores e fazedores de opinião a dar o dito pelo não dito e a fazer piruetas de assinalável dificuldade técnica. Lembrem-se que, para muitos, anti-comunistas, a China já não é comunista e só lhes falta entoar o hino.

Um outro assunto em nada relacionado com este — ou talvez não seja bem assim?! — é a inusitada greve dos jornalistas da TSF e a incrível falta de cobertura da imprensa a respeito. É mesmo assim que se vê a hipocrisia do jornalismo que anda sempre a apregoar-se como defensor da liberdade e suprime, assim, a informação de modo totalmente descarado.

publicado às 16:50

Presidenciais 2026: perspetivas tenebrosas

Faltam ainda três anos para o próximo sufrágio presidencial, mas já se delineiam os contornos do mesmo. E esses contornos são grotescos, as perspetivas tenebrosas.

À direita começa a tornar-se claro o que já se adivinhava: o comentador semanal Marques Mendes já se prepara para avançar. Em tudo muito parecido com Marcelo, um indivíduo com poucas qualidades do ponto de vista político, que colecionou sobretudo derrotas nas disputas públicas que teve, tem ainda contra si a gritante falta de originalidade de estar a copiar o modus operandi que o atual presidente utilizou para chegar a Belém. Se conseguir a eleição — e acredito que consiga — servirá de barómetro para aferir a debilidade assustadora da nossa democracia: uma democracia onde a televisão e o entretenimento formam os candidatos, conferem-lhes popularidade e decidem o resultado das eleições, independentemente da sua capacidade ou mérito. O passo seguinte será, seguramente, colocar algum apresentador ou ator em Belém ou São Bento (o pão nosso de cada dia na “democracia madura” dos Estados Unidos da América, por exemplo).

À “esquerda”, o caso não é tão claro. Fala-se em Augusto Santos Silva e em Mário Centeno. O primeiro tem trabalhado para isso: saiu do governo porque queria voltar ao seu lugar na academia, mas, desde então, continua a colecionar lugares de suma importância. Como Presidente da Assembleia da República, extravasa frequentemente das suas obrigações para simular disputas estéreis com o Chega e afirmar-se como antifascista dos sete costados, cumprindo na íntegra a estratégia subliminar do seu partido para secar a oposição e perpetuar-se no poder, a reboque dos fantasmas da extrema direita. O segundo abandonou o importantíssimo cargo de Ministro das Finanças para seguir a sua carreira e assumir as rédeas do Banco de Portugal. Agora, a ser candidato presidencial, seria uma incongruência novelesca que qualquer eleitorado decente rejeitaria como inaceitável.

A esquerda à esquerda disto continua à deriva. Sem intervenção, sem posicionamento, sem voz. Sabemos bem quem vai continuar a capitalizar politicamente com esta situação.

Faltam ainda três anos. Tenhamos calma. Até lá, ainda pode ser pior.

publicado às 14:13

O estado faz a sua cama e escolhe com quem se deita

Tem sido engraçado assistir à argumentação dos comentadores nobilitados em torno da questão dos certificados de aforro e ao modo encapotado com que foram diminuídos ou suprimidos, pela calada da noite: que não se justifica que o estado se continue a financiar deste modo quando o pode fazer, mais barato, lá fora; que não é admissível que continue a interferir com o que devia ser o negócio da banca; e, finalmente, porque não é justo que os portugueses paguem os juros de alguns dos mais favorecidos. Não se trata, de facto, de verdadeira argumentação: trata-se, antes, de uma cacofonia de mugidos e zurros, sem vislumbre de racionalidade, ética, moral, honestidade intelectual ou decência. O problema, como sempre, é que a cacofonia é apresentada em uníssono em todos os meios de comunicação e pouca ou nenhuma oposição enfrenta.

Os certificados de aforro não são uma mera política de financiamento do estado, são mais que isso, têm que ver com os sinais que se pretendem dar ao cidadão comum, o incentivo à poupança e um contributo para uma gestão equilibrada das economias familiares. Menorizar este instrumento é endereçar um convite muito claro aos apetites do consumo e do endividamento, os quais, como bem sabemos, não carecem de incentivo.

A ironia das ironias — ou talvez não, talvez tudo faça muito mais sentido assim —, é ver que os que defendem esta medida são os mesmos que se espumam em êxtase com a possibilidade de Passos Coelho voltar para desgovernar o país, o mesmo Passos Coelho que apontou o indicador aos portugueses que viviam acima das suas possibilidades e que endividaram o país.

Mas vamos à realidade do país. Quem utiliza os certificados de aforro é a classe média e quem paga os certificados de aforro é o próprio dinheiro dos certificados, em primeiro lugar, na mesma lógica da reprodução do capital que os adeptos do mercado tanto gostam e, no limite, será a própria, a mesma classe média que os pagará, como tudo o resto neste país. Querer deixar a suspeita de que é o dinheiro dos pobres que paga os juros dos certificados de aforro é simplesmente idiota. A isto estamos cada vez mais habituados.

Lançar a ideia de que é melhor o estado andar a financiar-se nos mercados internacionais do que com instrumentos da natureza dos certificados de aforro é outra pérola. A qualidade do ensino de economia neste país está a bater, seguramente, no fundo do poço. É dinheiro dos portugueses que fica nas nossas reservas e a qualidade da retribuição é diretamente relacionada com a estabilidade, permanência e incremento dos seus valores. O financiamento nos mercados internacionais é um negócio instável do qual, acaso tivéssemos uma memória melhorzita, estaríamos mais que avisados pela última crise financeira que sofremos na pele.

E, depois, há a questão moral. Quem ouve estes comentários e desconhece os certificados de aforro, fica seguramente a pensar que é possível viver à custa dos seus juros, os monstruosos 3,5 pontos percentuais máximos. A que ponto chegámos nós para considerarmos que 3,5% é muito de retribuição para um dinheiro parado, dinheiro que ajuda o estado e que este aplica na sua gestão própria, para fazer face às suas necessidades? Em anos em que a inflação acumulada é de mais de 10%, este modo de pensar é revelador.

Não, isto não se trata de uma opção económica racional: trata-se de mais um favor que o estado faz aos lucros dos capitalistas, das grandes empresas e da grande banca transnacional, um favor a expensas da sustentabilidade e da saúde económica do país. Um país que despreza os escassos instrumentos que tem em obséquio da ganância dos interesses privados. Neste caso, como em todos os outros, é o estado faz a sua cama e escolhe com quem se deita.

publicado às 16:01

A normalização do Chega. Uma sociedade que sai do armário.

Desde a nova reconfiguração política no panorama nacional que se esperava o que se tem visto nos últimos tempos: a normalização do Chega. Se ainda antes do último ato eleitoral o Chega era já presenteado com uma cobertura mediática perfeitamente desproporcionada em relação ao seu real peso político — o que, aliás, concorreu para o seu crescimento eleitoral —, a verdade é que agora há algo mais profundo a decorrer por entre as camadas mediáticas.

Há uma normalização em curso desse partido, uma valorização do seu argumentário, dos seus posicionamentos e das suas ações políticas. Isto tudo vem adicionar a uma cada vez mais robusta projeção mediática: constantemente a abrir telejornais e em entrevistas. Os meios de informação portugueses têm, ao que parece, uma grande curiosidade e interesse em ouvir o Chega, uma curiosidade e interesse que nunca tiveram por outras forças políticas. A este respeito, a moção de censura apresentada na semana passada foi uma espécie de orgasmo para uma comunicação social cada vez mais enviesada à direita.

É claro que o dedo acusador da história nunca se voltará em direção aos próprios jornalistas. Quando isto der para o torto, quando começarmos a sofrer na pele a ascensão do Chega (e não falta muito para que isso se comece a sentir), ninguém irá perguntar a estes mesmos jornalistas que expliquem as suas “opções editoriais”. E é claro, também, que isto é mais que algo que se possa imputar unicamente aos media. É toda uma sociedade que se revela, que sai do armário, juntamente com os seus ansiosos e impacientes esqueletos guardados desde a primavera de 74.

publicado às 09:14

O estado da academia

Tenho acompanhado com interesse e curiosidade a contenda que tem oposto Raquel Varela, figura pública, interveniente no espaço de opinião e investigadora destacada na área de História, ao jornal Público. É surpreendente constatar que, aquilo que aparentemente começou como um lamentável ataque pessoal e difamatório de um meio de comunicação social a uma personalidade que ousou criticá-lo, se tornou num caso ético-moral no que diz respeito à investigação científica e ao estado geral da academia no país e, até, no mundo.

Para se defender do ataque que o seu impressionante currículo foi alvo, a investigadora e professora universitária limitou-se a apresentá-lo e a descrevê-lo no contexto das boas práticas às quais toda a academia adere. A defesa cabal, todavia, teve o condão de destapar a face de como é feita investigação nos dias de hoje, como se sobe na carreira universitária, como se constroem currículos.

Em cinco anos, a investigadora regozija-se nas suas redes sociais com o facto de ter publicado 41 artigos, 23 livros e supervisionado 25 estudantes de pós-graduação, numa pequena parcela de um currículo verdadeiramente extraordinário, pelo menos do ponto de vista quantitativo. Mas fiquemo-nos por estes cinco singelos anos que terão alegadamente servido de base para o concurso que esteve na origem do putativo processo de difamação de que está a ser alvo: são, em média, mais de 8 artigos por ano, mais de 4 livros por ano e exatamente 5 orientações por ano! A defesa cabal de Raquel Varela esbarra numa inexorável parede chamada de realidade: pensar que uma pessoa pode produzir este tipo de trabalho para além da sua atividade regular enquanto docente universitária, já para não falar das inúmeras e regulares participações em espaço público, é algo de absolutamente surreal. Apetece dizer que, em cinco anos, seria difícil sequer ler completamente a obra produzida, quanto mais pesquisar, estudar, escrever e publicar — note-se, a este respeito, que a burocracia envolvida na publicação de um artigo numa revista científica com arbitragem é coisa para demorar, por si só, anos.

Este texto de opinião, sublinho-o, não tem em Raquel Varela nenhum alvo: apenas utiliza o seu caso como pretexto para refletir sobre o modo como funciona a investigação científica em Portugal e no mundo. Raquel Varela joga o jogo conforme as regras do mesmo. Acredito que não tenha feito rigorosamente nada de errado. Nada a distingue da generalidade dos investigadores. É o sistema de publicação colaborativa massiva, no qual participam dezenas de investigadores que depois se perfilam como coautores dos trabalhos, mesmo que a sua colaboração seja eventualmente residual. É a desmultiplicação de uma mesma ideia pelo número maior possível de artigos, nos mais variados formatos. O que conta são os números e os números finais justificam os meios.

A academia está convertida nesta selva de publicações, nesta escrita à pressão estilo copy-paste, nesta exigência por resultados numéricos para se poder apresentar em powerpoints bonitos para justificar dotações estatais, bolsas de investigação e prestígio académico. O conteúdo da investigação, a qualidade da mesma resultam desfocados no meio da profusão de publicações. Quem é que realmente se interessa pelo sumo da coisa? Quem é que se dá ao trabalho de ler o que está lá escrito? Ninguém: o que interessa é o número de publicações, o nome e o prestígio das revistas.

Tudo isto funciona muito bem se ninguém começar a mexer no sistema. Se se começar a mexer, então tudo é passível de ser questionado. É tudo legal. Se calhar, até pode ser considerado ético, tão transformadas que estão as instituições de ensino superior. De moral é que tem muito pouco.

Por toda a parte, o polvo capitalista estende os seus tentáculos, infetando, como um vírus, cada divisão da ação humana. Mesmo as mais nobres caem corrompidas, trocam a qualidade pela quantidade, sucumbem a números sem significado e sem alma, sujeitam-se aos interesses de quem pode e de quem manda. O estado pandémico que atravessamos tem-se constituído como um boa plataforma para se entender o quão baixo chegou a credibilidade da academia, perfeitamente perdida em estudos contraditórios e em encruzilhadas de interesses.

Há certos domínios que deveriam estar imunes ao poder e à tentação do capital. O problema é que o capitalismo é coisa que não se pode circunscrever, que cresce e que se desenvolve sem controlo e que, quando damos conta, já tudo tomou sob a sua influência. Isto é algo que a esquerda nova, social democrata, a das agências de supervisão e de controlo, a dos escalões e das taxas devia prestar mais atenção. É impossível controlar o monstro.

publicado às 15:01

Uma vez mais, a Alemanha

Nos últimos anos têm-se vindo a multiplicar os protestos populares na Roménia, sobretudo nas suas cidades mais cosmopolitas com expoente máximo na capital Bucareste. A razão de ser de tais manifestações é uma corrupção governamental crescente tão vergonhosa, que o primeiro-ministro local chegou ao descaramento de influenciar o processo legislativo para evitar ser preso ou julgado pelos seus crimes de lesa-pátria. O povo saiu à rua em força, gritou com toda a força que guardava nos pulmões, mas à parte da Roménia, ninguém aqui, na Europa civilizada, ouviu o que quer que fosse, escassas notícias foram impressas sobre o assunto, nenhum comentário foi emitido no noticiário sobre a situação, nenhum vestígio de indignação. Absolutamente nada.

 

Um pouco mais a norte, no enfiamento do mesmo meridiano, a pouco mais de quinhentos quilómetros, a Bielorrússia tem vindo a ser tema de conversa desses mesmos jornais e noticiários de televisão. Aparentemente, as eleições locais geraram suspeita. Aparentemente, tem havido manifestações diárias de dezenas, não, centenas!, não, milhares!, não, dezenas de milhares!, não não, centenas de milhares! — assim é que é! —, reprimidas pelo estado. Há opositores políticos encarcerados e outros no exílio. Há isso e há muito mais. O pacote que os media nos oferecem nestes contextos é já bem conhecido e aplica-se de modo notável neste caso particular. A Bielorrússia, provavelmente o país mais ordenado e organizado da Europa, com uma taxa de crime praticamente nula, está convertida no inferno na Terra, pelo menos, a confiar no que nos dizem os nossos canais informativos.

 

O meu problema não é eu ter um certo afeto pela Bielorrússia e não ter assim tanta afinidade pela Roménia. Afinidades, como os amores, não se discutem, nem se escolhem. Ademais, não ponho as mãos no fogo pela liderança atual da Bielorrússia, nem tomo esse país como um modelo a seguir. Mas isso também não é para aqui chamado, não será assim? Se calhar o nosso problema é precisamente este: permitimos sermos guiados pela emoção em vez da razão e essa será a chave para quem nos governa conseguir perpetuar os seus poderes, manipulando-nos constantemente e, assim, sobrevivendo a cada eleição e a cada escândalo.

 

O meu problema é a diferença de critério, são os dois pesos e as duas medidas, porque não é só a Ucrânia que está entre a Roménia e a Bielorrússia, há algo de mais substantivo que separa estes dois países e que justifica as evidentes diferenças de tratamento aplicadas a um e a outro.

 

Qualquer observador atento da realidade política internacional que não conheça as lengalengas contadas usualmente a propósito da criação das comunidades várias que deram origem à União Europeia, dirá que o objetivo principal desta última terá sido coser na perfeição um manto protetor feito à medida da Alemanha. Com esse manto chamado União Europeia, a Alemanha foi capaz de camuflar os seus interesses expansionistas fazendo uma espécie de reset àquilo que foi a memória coletiva mundial pós duas guerras mundiais. Tudo na União Europeia, as suas regras, as suas políticas produtivas comuns, as suas distribuições de renda, a moeda única, a admissão de novos membros, etc, tudo foi feito na justa medida dos melhores interesses germânicos. Até mesmo em termos de política externa, a Alemanha encontrou um intermediário ideal que, falando em nome do grupo, defende, de facto, os seus interesses.

 

A diferença é esta. A Roménia já se libertou da influência russa desde o início dos anos noventa e, com isso, entregou, paulatinamente, todos os seus recursos naturais, todo o seu património empresarial nas capazes mãos alemãs. A Roménia está, portanto, do lado certo. Já a Bielorrússia é talvez o derradeiro aliado europeu da Rússia e mantém em seu poder a exploração dos seus recursos e a organização do seu país. A Bielorrússia está, como é evidente, do lado errado da História. Daí, as gritantes diferenças de tratamento.

 

A Roménia não é, bem entendido, o único exemplo que podemos fornecer. Aliás, o retrato traçado sobre a Roménia poderia ser reproduzido com muitas semelhanças relativamente a muitos outros países vizinhos. Desde o final da guerra fria, cada país do leste europeu que descobriu e se converteu às maravilhas do capitalismo do ocidente foi um país que engrossou o protetorado alemão. E sentem-se bem desse modo. Não se importam de já não terem fábricas suas, nem companhias aéreas, nem matérias primas. Adoram imaginar-se alemães. A Alemanha está efetivamente a conseguir pela via económica o que nunca conseguiu pela via militar.

 

Nos últimos dias, tivemos conhecimento do envenenamento de mais um opositor de Putin, desta feita em solo germânico. Pela forma como a notícia nos é apresentada, não restam quaisquer dúvidas para ninguém de que a Rússia será a culpada. Se assim é, será possível reconhecer também a total incompetência dos russos nestes envenenamentos que nunca cumprem plenamente os seus intentos, deixando sempre as vítimas vivas e um rasto de provas irrefutáveis. É estranho. E neste mar de estranhezas sucessivas, alimentadas ora por americanos, ora por britânicos, ora por franceses, ora por alemães, prosseguem estes últimos um rumo fixo e determinado de dominação ideológica e económica do leste europeu.

publicado às 18:01

Um adeus a Bernie, um adeus à esperança

Estas semanas de confinamento tiveram em mim, como os meus leitores já devem ter notado, um efeito de distanciamento social no verdadeiro sentido da palavra. Distanciei-me da sociedade, dos seus ecos, das suas ilógicas, das notícias, dos jornais, da repetição, do condicionamento.

 

Por um lado, confesso não ter tolerância para este fluxo contínuo e ininterrupto de notícias sobre o covid-19, para este jorro demente de informação sem critério, sem contexto e sem juízo, para esta prova acabada de como a sociedade se converteu num rebanho de doutores tosquiados ao som dos clamores de um pastor histérico.

 

Por outro lado, também não disponho da energia para andar a rebater e a contrariar este movimento universal. Afinal, quem sou eu — no contexto das limitações que também me afligem — para o fazer? Não disponho — nem posso dispor — de provas ou de cabais demonstrações e da autoridade moral que elas conferem para encetar tal demanda. Do que disponho é deste senso comum que persiste em não me abandonar e que vive, por este dias, ofendido, agredido a cada instante, a cada mirada fugidia no jornal, a cada descuido do ouvido com a mudança do canal. E, claro, disponho também da memória do passado que não me permite aquele brilhozinho no olhar, que apenas quem observa as coisas pela primeira vez pode ter, e a mundividência, o ter mundo, o conhecer muitos lugares mais ou menos longínquos e ter sempre presente que não vivemos isolados numa ilha, que o que nos acontece não nos confere uma qualquer qualidade especial.

 

Este texto não serve, pois, para falar do covid-19 nem para beliscar sequer esta loucura à qual estamos todos forçadamente confinados. Deixarei o tempo passar e, no final, se assim o entendermos, poderemos olhar para trás e fazer as nossas avaliações ao que foi feito, ao que nos sujeitaram e, coletivamente, à diferença entre o ponto de partida e o ponto de chegada. Essa avaliação, todavia, nunca é feita. Sei-o bem. Repare-se, a título exemplificativo, como as autoridades de saúde portuguesas diziam no início do mês passado, coadjuvadas pela generalidade da comunidade médica, que o uso de máscaras era absolutamente ineficaz e contraproducente e, agora, essas mesmas pessoas defendem o seu uso generalizado. Não vejo ninguém propriamente indignado com isto. O rebanho vive a histeria do momento e não consegue parar para refletir sobre o que o aflige. São os tempos modernos... são os tempos modernos.

 

Queria escrever, hoje, sobre Bernie Sanders, o quase octogenário que tentava, uma vez mais, ser o candidato presidencial democrata contra Donald Trump em terras do tio Sam.

 

Tive conhecimento das primeiras vitórias auspiciosas de Bernie sobre a sua concorrência, mas depois, a infeção mediática do covid-19 fez com que deixasse de acompanhar a corrida. Em boa verdade, não é que esta encenação democrática tão enraizada no folclore dos Estados Unidos da América me suscitasse um qualquer particular interesse. Não sei, até, se já o escrevi aqui, mas nunca vi em Bernie uma alternativa verdadeira para a América e para os americanos começarem a transformar o seu modo de vida. Acho improvável que alguém que fez toda a sua carreira no establishment, dentro do sistema, possa vir a contribuir para a sua reforma ainda que, na minha opinião, a reforma do sistema capitalista seja atividade perfeitamente infecunda. Para mim, sempre se afigurou muito mais provável que Bernie estivesse a usar essa retórica dita “socialista” como um pretexto para almejar um poder que nunca teve. Todavia, é certo que Bernie se apresentava com uma linguagem rejuvenescedora pela sua assertividade, transportava uma mensagem sem mas e sem ses, abrangente e unificadora de diversos quadrantes e isso parecia constituir um upgrade relativamente à oratória oca e dissimulada de Obama que cavalgou a onda das aspirações da população afro-americana e resultou em coisa nenhuma. Bernie era isso, era uma esperança reforçada em algo que pudesse ser novo ou diferente, que pudesse constituir um passo em frente civilizacional num grande país que persiste em viver de forma tão atrasada, parado ainda antes do início do século XX, organizado de forma tão pouco solidária, sob regras tão pouco humanas, tão primárias. Bernie era só uma esperança e nada mais que uma esperança.

 

Foi, por isso, com grande surpresa e desolação que tomei conhecimento hoje da desistência de Bernie Sanders da corrida à nomeação, deixando Joe Biden sozinho. Não se trata de que Biden, como versão masculina de Hillary Clinton, íntimo dos mais perversos interesses económicos americanos, não terá qualquer hipótese de derrotar Trump. Mesmo que tal, por milagre, acontecesse, e ao contrário do que a maioria infundadamente pensa, isso não traria nenhuma vantagem aos americanos nem ao mundo. A questão é outra.

 

A questão é que, se nem agora, depois de uma década de americanos a amontoarem-se nas valetas das ruas e das estradas e nos parques e debaixo das pontes com as suas tendas, com as suas roulottes, despedidos dos seus trabalhos, despejados das suas casas, e que não vêm qualquer futuro para si e para os seus filhos, sequelas palpáveis da última crise do capitalismo, se nem agora, morrendo mais e mais sem qualquer assistência médica — chegam informações que o número de mortes por pneumonia nos EUA já vinha aumentando exponencialmente desde o ano passado ainda antes do covid-19, para não referir as crescentes mortes de diabéticos e de outros doentes crónicos sem acesso a medicação — se nem depois de tudo isto, e de tudo o resto que podia ser aqui também elencado, os americanos votam numa esperança de mudança, seja ela chamada de Bernie Sanders ou não, então é difícil acreditar se algum dia o farão. A tristeza da coisa é esta.

 

Esta desistência de Bernie é, pois, mais que um adeus ao senador que, com certeza, não deve aventurar-se mais nestas coisas: é, sobretudo, um adeus à esperança. O país bastião do capitalismo no mundo que atualmente vê a sua influência a escapar-se acelerada e irremediavelmente como areia por entre os seus dedos, é, fundamentalmente, um país condenado a um futuro de decadência porque, nele, dentro das suas fronteiras morais e filosóficas, não subsiste um singelo vestígio de esperança.

 

Nota final para o site onde li sobre a notícia da desistência de Sanders. Diz aqui, no Diário de Notícias da Madeira, e passo a citar, que “Bernie Sanders, 78 anos, senador pelo estado de Vermont, tinha começado as primárias do Partido Democrata com três importantes vitórias, apesar das suas ideias radicais de esquerda, sobretudo nas áreas da economia e da saúde.” Reparem bem: para um jornal português as ideias de Sanders, como por exemplo criar um sistema nacional de saúde para os americanos, são “ideias radicais de esquerda”. É elucidativo do panorama que temos.

publicado às 11:34

Desculpe, disse Luanda Leaks?

Acho que no passado não havia tanta hipocrisia. Está bem que havia a religião, poderosa, a justificar tudo o que fosse necessário, a condecorar os vencedores como humildes servos de Deus e a julgar os vencidos como hereges, infiéis e outros adjetivos que tais, independentemente do sangue que escorria das armas de ambos os lados. E a religião mais não era, bem entendido, que um pretexto escrito para fundamentar aquela nossa natureza abjeta de louvarmos os vencedores ao mesmo tempo que pisamos os vencidos.

 

Mas no fundo, bem lá no fundo..., não havia tanta hipocrisia no processo. Faziam-se as guerras e aos vencedores era dado tudo, todo o espólio, na mesma proporção em que aos vencidos tudo se retirava. Era a lei tácita que existia e era compreendida e aceite como natural por todos, com um maior ou menor florear da coisa.

 

Hoje a lei que vigora é exatamente a mesma mas há uma coisa que se junta à mistura e que confunde as ideias. Vêm os jornais e os jornalistas, as televisões, as rádios e enchem-nos com teorias, tramas, provas, acusações e julgamentos e, de repente, já não se trata de uma coisa corriqueira, já não é a normal sucessão de poderes, parece que é mais do que isso, como que uma vontade de uma força superior, estado de direito, alta moralidade, coisa que tem que ser assim para que sejamos sérios e respeitáveis, disputa simplista mas superlativa do bem contra o mal. E aí, o pisotear os vencidos adquire uma outra razão de ser porque de vencidos já não trata a questão: os vencidos passam a ser um tipo de gente vil, gente que não presta e que deve ser amputada da sociedade porque infeta e apodrece como gangrena a gente boa, séria e respeitável.

 

É espirituoso assistir a episódios destes, dia após dia. As lutas pelo poder disputam-se no espaço mediático e parece que a lei tácita de que falava já não chega: é necessário convencer as massas. As narrativas que se tecem fazem tábua rasa do que foram os eventos do passado. Os padrinhos, que outrora os ergueram em braços, convertem-se em carrascos. São os mesmos e fazem-no de cara destapada e com moral elevada. E nós? Assistimos com curiosidade, como se não tivéssemos memória do dia de anteontem, e cremos piamente na supremacia de um certo ideal de moralidade, de seriedade, de bem e de justiça. Dormimos bem à noite, assim. Bons sonhos!

publicado às 13:24

Aviso

O prato que se está a cozinhar na política portuguesa é perigoso. Preocupa-me que a extrema direita esteja a marcar o ritmo mediático da política. Preocupa-me que esteja constantemente nas primeiras páginas e a abrir os noticiários — e não é só nos órgãos da trupe do Correio da Manhã. Preocupa-me que o parlamento esteja convertido num palco para um conjunto de partidos sem ética nem espinha dar espetáculo, conspurcar o debate e denegrir a república. Do modo que as coisas se apresentam, parece que o que quer que se possa fazer para combater André Ventura e o Chega é virado do avesso e usado em seu favor. Devemo-nos começar a preparar para o que virá a seguir a isto.

publicado às 12:25

Mais sobre mim

imagem de perfil

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2014
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub