Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Se tudo é, então nada é

No início de uma madrugada igual a tantas outras, entretive o espírito com um poema que me chegou ao olhar. Era um conjunto de frases elegantes, construídas com belas palavras. Falava de amor — claro, o omnipresente amor! —, dois amores, em verdade, que se confundiam: um amor carnal e um amor mais abstrato do que o primeiro, incorpóreo, por ter como objeto de afeição, nada mais, nada menos, que uma cidade. Isso mesmo: dois amores que se misturavam num só numa efervescência de palavras belas.

 

A leitura deste poema produziu em mim aquele sentimento de satisfação incompleta, um certo contentamento imperfeito, tão familiar, tão banal nos dias de hoje. Deem-me um desconto: já sou suficientemente velho para habitar em mim uma permanente impressão de que nada é novo e que tudo são variações mais ou menos descaradas de temas já amplamente tratados no passado.

 

A minha curiosidade prendeu-se, pois, não no conteúdo mas na forma do poema, mais precisamente na ausência de forma ou estrutura, sem métrica ou qualquer tipo de regularidade silábica ou a nível da rima. Aquele poema seria, assim, uma espécie de construção em verso livre. Sim: desta maneira não nos comprometemos e estamos sempre certos.

 

O que é certo é que a coisa fez germinar em mim uma dúvida fundamental: deste modo, sem regularidade que me valesse, sem estrutura para me dar um chão, como poderia eu, um leigo, qualificar o que havia lido como poesia? É que hoje em dia já ninguém escreve sonetos ou odes, ninguém perde tempo a contar sílabas, a acomodar rimas interpoladas ou cruzadas, nem a submeter-se a qualquer tipo de estrutura ou forma. O verso livre é a expressão, na poesia, desta filosofia de liberdade que alcança todas os braços da arte e se liberta com violência das restrições da forma, num culminar de toda uma evolução iniciada desde o Renascimento. Expressões similares encontramos também na pintura, na escultura, no bailado ou na música.

 

Liberdade, liberdade, liberdade! Liberdade! Foi este o caminho.

 

Ou não?

 

O problema é este: se tudo é passível de ser considerado como poesia, se tudo é poesia, se tudo é poema, então… nada é. Pensem nisto.

 

Quase tudo é definido por negação. Sabemos o que as coisas são, não através de uma epifania qualquer que nos bate nos sentidos da alma mas através do que não é. O que não é define o que é. Se tudo é poesia, então nada é poesia, esvazia-se o conceito, deixa de ser relevante a qualificação. Se qualquer sarrabisco numa tela é pintura enquanto arte, então nada é pintura. Se qualquer conjunto aleatório de sons é qualificado como música contemporânea, então até o barulho produzido pelos automóveis na hora de ponta pode ser qualificado como música e, portanto, nada mais é música porque tudo o é. Se qualquer aglomerado de pedras é escultura, então nada mais é, nada mais é escultura. É tudo uma expressão subjetiva da atividade humana de valor relativo às impressões e não à técnica que, mais não é que o domínio da forma que perece, que deixa de existir.

 

A forma é, pois, importante. As regras são importantes. As restrições à liberdade, também na arte, são determinantes para dotar o ser humano de liberdade, precisamente, na criação. A arte mostra-nos como a liberdade sem limites é um método infalível para coartar a própria liberdade, por paradoxal que isto possa soar. Se quisermos matar a criação humana, basta dar-lhe toda a liberdade, destruir as estruturas, matar as formas. Veja-se como é infértil a arte contemporânea, sobrevivendo, envergonhada, sem o assumir, à custa das formas célebres do passado. O verso livre é infértil, assim como as expressões contemporâneas da música, da pintura ou da escultura, perfeitamente incompreendidas por um público sem norte. Porque sem forma, não há arte. Sem restrições à liberdade, não há liberdade. Porque se tudo é, então nada é.

publicado às 18:39

Ingredientes para uma grande obra

O que faz de um livro um grande livro? Antes disso: o que faz com que uma obra de arte supere a generalidade e se apelide de “grande”? Podemos dividir uma obra em duas partes: forma e conteúdo.

 

A primeira tem a ver com a técnica de construção da obra. Uma grande obra deve ter uma forma irrepreensível que marque indubitavelmente o estilo ou, então, que seja ela própria geradora de um novo estilo de fazer. A técnica apurada e/ou inovadora do autor servirá, então, de exemplo aos que o seguirão. Ao estilo de fazer podemos chamar o estilo de contar, contar a história, transmitir uma mensagem.

 

Chegamos assim ao segundo ponto: o conteúdo da obra. Trata-se de um ponto repleto de controvérsia já que para muitos o tratamento formal da obra é o suficiente e é aquilo que é importante. Essas pessoas precisam de ir ao Rainha Sofia e parar um pouco diante do Guernica. Parar um pouco. Isso seria o suficiente. Ou então assistir a uma qualquer ópera de Verdi. Uma qualquer. É verdade que existem correntes artísticas abstratas onde o conteúdo pode se encontrar esbatido mas o menosprezo da sua importância na valorização da obra de arte será sempre um erro.

 

O conteúdo da obra é uma espécie de energia que anima o corpo da obra, a forma e as grandes obras de arte são exatamente isso: obras magníficas a nível formal com uma história genial e autêntica animando cada linha de texto, cada pincelada, cada nota musical.

publicado às 16:45

Mais sobre mim

imagem de perfil

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2014
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub